terça-feira, 26 de agosto de 2014

A porta estreita


No evangelho deste Domingo, o XXI do Tempo Comum, Jesus continua Seu caminho para Jerusalém, rumo à Sua paixão, morte e ressurreição. Seu caminho é o dos cristãos.
Pois bem, no caminho, fazem-Lhe uma pergunta: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” É daquelas perguntas que Jesus não responde, porque se fundam na curiosidade inútil e não naquilo que Ele veio revelar e inaugurar: o Reino de Deus, que exige de nós uma abertura de coração e uma resposta de amor para segui-Lo no caminho.
Atualmente, é tão comum apresentarem um cristianismo de curiosidade sobre o fim dos tempos, sobre milagres, sobre curas… Um cristianismo interesseiro, que busca somente emoção e solução de problemas… Tudo isso é um falso cristianismo: vazio, anti-evangélico e sem sentido algum… Um cristianismo que trai o Cristo!
Ao invés de responder a pergunta que Lhe fizeram, o Senhor vai direto ao ponto que realmente interessa… Por isso, responde com uma advertência: Não é da nossa conta se são muitos ou poucos os que se salvam! Interessa, isso sim, que tenhamos uma tal atitude hoje, no presente de nossa vida, em relação ao Senhor e ao Seu Evangelho; interessa que possamos herdar a salvação: “Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque Eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão”. Portanto, o Senhor chama nossa atenção para o presente, como estamos nos posicionando agora em relação a Ele!
Por que o Senhor afirma que a porta é estreita e que muitos tentarão e não conseguirão?
Será que Deus nos preparou uma armadilha?
De modo algum! Na Casa do Pai há tantas moradas…
A porta é estreita porque nos tornamos grandes demais, autossuficientes demais, prepotentes demais, demasiadamente cheios de nós mesmos, inchados! A porta é estreita porque nossas manhas sãos largas… Portanto, há um combate a ser travado em nós, para nos adequarmos ao Reino de Deus.
O Reino é para os pequenos, e nos tornamos gigantes pelo orgulho, a soberba, a autossuficiência.
O Reino é para as crianças, e nos tornamos adultos no sentido da velhacaria, da desconfiança, do cinismo, do cálculo segundo a carne!
Quando Miguel de Unamuno morreu, encontraram na sua mesa de trabalho estes versos:
“Aumenta a porta, meu Pai,
para que eu possa passar!
Tu a fizeste para as crianças
e eu cresci, a meu pesar!
Se não aumentas a porta,
diminui-me, por piedade!
Faz-me voltar à idade
em que viver era sonhar!”
Eis! Voltar a ser criança, a ser pobre, a ser confiante, pequeno, ante o Senhor! Em uma palavra: deixar que o Senhor reine em nós, que o Seu Reinado nos invada! Mas, o quê?! Crescemos, queremos nós mesmos controlar nossa vida, decidir de modo autônomo, sem Deus, os nossos passos! Seguindo nossa lógica, nossos instintos, nossas paixões, não entraremos! Não entrará no Reino quem primeiro não deixar o Reino entrar em si, no seu coração e na sua vida!
Vejam, meus Amigos, a luta de que falei, a necessidade da conversão! Enquanto teimarmos em viver do nosso modo, pensando do nosso jeito, vivendo à nossa medida, em suma, sendo o reizinho da nossa vida, o Senhor não reinará em nós, Seu Reino bendito não será uma presença na nossa vida… repito: se o Reino não entrar em nós, nós não entraremos no Reino!
Aliás, querem mesmo saber qual é essa tal porta estreita? Querem, de verdade?
Tem uma cruz aí perto de você, na sua sala, no seu quarto?
Olhe para ela… Viu como é estreitinha?
É por ela que é preciso passar, é nela que é necessário entrar!
Eu imagino que você tenha medo – eu também tenho tanto medo, cada vez que olho para ela…
Mas, tenha medo não (eu digo sempre isto param im mesmo!): o Cristo, nosso Senhor passou primeiro, abriu-nos o caminho! Não estaremos sozinhos!
Tenha medo não: detrás dessa porta está o Reino, a Luz, a Liberdade, a Paz, a Vida, a Glória imperecível! Não há desvio, não existe atalho, não é possível arrodeio: “Quem não ama a cruz de Cristo não herdará a glória de Cristo!” (São João da Cruz)
Uma coisa é certa: ser cristão, caminhar para o Céu, não é um passeio, não é um caminho fácil, não dá nem para pensar que é num passe de mágica, num sorriso, num vago sentimento de piedade, num oba-oba qualquer! “O Reino sofre violência e violentos se apoderam dele!” (Mt 11,12)
Sem conversão – sem disciplina, renúncia, esforço, perseverança, mudança de atitudes e hábitos, sem oração – não se pode entrar no Reino de Deus! Jesus é taxativo – e dá medo! – “Eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão!”
Por isso mesmo a Leitura do Apóstolo, neste Domingo, nos previne: “Meu filho, não desprezes a educação do Senhor, não desanimes quando Ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem Ele ama e castiga a quem aceita como filho! É para a vossa educação que sofreis! Portanto, firmai as mãos cansadas e os joelhos enfraquecidos; acertai os passos dos vosso pés, para que não se extravie o que é manco, mas antes seja curado!”
Qual o seu vício? – Combata-o?
Quais os seus pontos fracos em relação a Cristo? – Elimine-os, com a ajuda da graça!
Qual o seu pecado? – Lute para sair dele e ser livre para o Senhor?
Qual a sua provação? – Com a força que vem do Senhor, supere-a!
Há ainda mais dois aspectos importantes para os quais o Senhor chama a nossa atenção:
(1) Haverá um momento final, definitivo, decisivo e irremediável na nossa existência: “Uma vez que o Dono da casa se levantar e fechar a porta, vós, do lado de fora, começareis a bater, dizendo: ‘Senhor, abre-nos a porta!’ Ele responderá: ‘Não sei de onde sois’.”
Tremendo, não é? Não dá para disfarçar, não dá para dizer que não é bem assim, não dá para procurar explicações fajutas para mascarar a gravidade das palavras do Senhor!
Cuidemos, portanto, porque haverá um Momento final, um julgamento definitivo, um Céu ou um Inferno que nunca passarão! Não nos esqueçamos disso; não brinquemos com isso!
Depende de nossas escolhas, de nossas atitudes bem concretas em relação ao Senhor e Seu Reinado em nossa vida, para que esse Momento Final, momento tremendo, seja a entrada na Plenitude ou um salto no Vazio danado, seja um átimo de terror inexprimível ou, ao invés, o melhor de todos os nossos momentos!
2) Seremos julgados por nossa relação com Ele, o Cristo Senhor. Se hoje O amamos, se hoje vivemos o Seu Evangelho, se hoje praticamos a justiça do Reino que Ele trouxe, seremos reconhecidos por Ele; caso contrário, seremos rejeitados: “Começareis a bater, dizendo: ‘Senhor, abre-nos a porta!’ Ele responderá: ‘Não sei de onde sois. Afastai-vos de Mim todos vós que praticais a injustiça’”.
Nosso futuro está ligado à nossa atitude concreta em relação a Jesus hoje!
Por isso mesmo, hoje escutemos, mais uma vez, a advertência do Autor da Carta aos Hebreus: “Meu filho, não desprezes a educação do Senhor; pois o Senhor corrige a quem ama e castiga a quem aceita como filho…” É no hoje da vida que o Senhor nos espera; é no nosso presente que o nosso futuro eterno é decidido.
Como tenho vivido meu hoje, meu presente em relação ao Senhor? Vou construindo meu céu ou meu inferno?
(DOM HENRIQUE SOARES DA COSTA)

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

“Eis que estou à porta e bato”


Nossa morada interior é guardada pela mais robusta e impenetrável das portas. Esta, porém, tem a peculiaridade de não possuir fechadura pelo lado de fora.
Na época em que a sociedade não estava tão mecanizada e as pessoas levavam uma vida muito menos agitada do que a nossa, a chegada de visitantes a uma residência era um acontecimento. Dotadas de paredes grossas, as casas daqueles tempos fechavam-se com pesadas portas guarnecidas de travas robustas. E, ornando seu lado exterior, contavam elas com um peculiar acessório que anunciava a chegada dos forasteiros: as aldravas.
Belas peças decorativas, podiam ter a forma de um dragão ameaçador ou reproduzir, com delicado realismo, belos florões ou conchas. Grandes ou pequenas, refletiam de algum modo o bom gosto, as posses e a têmpera do proprietário. No entanto, seu som era sempre forte e categórico, como prenunciando a importância do que ia suceder: alguém se dispunha a transpor os umbrais daquele lar para ser recebido como amigo e participar do convívio familiar.
Franquear ou não a entrada de um hóspede dependia da vontade do senhor da casa. Com seu assentimento, os ferrolhos eram movidos e as portas se abriam de par em par, em sinal de hospitalidade. Às vezes, até se entregava para o visitante uma chave que lhe permitia entrar por si só. Não obstante, o dono da residência podia também manter bloqueada a entrada, negando acolhida ao visitante.
Ora, não são apenas os edifícios que possuem entradas que se abrem ou fecham. Nossa morada interior é guardada pela mais robusta e impenetrável das portas: aquela que protege o nosso coração. Esta, todavia, tem a peculiaridade de não possuir fechadura pelo lado de fora, mas apenas uma aldrava. Não há chave que permita abri-la. Para cruzá-la é preciso que nós — os “donos da casa” — autorizemos a passagem.
E quantas vezes por ela quer entrar o mais nobre dos hóspedes, desejoso de estar em nossa companhia! “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e Me abrir a porta, entrarei em sua casa e cearemos, Eu com ele e ele comigo” (Ap 3, 20), diz a Sagrada Escritura.
Com efeito, Jesus bate em inúmeras ocasiões à nossa porta: quando admiramos um belo pôr do Sol, ao recebermos um bom conselho, ao lermos uma palavra edificante, quando nos aproximamos dos Sacramentos ou estamos junto ao Sacrário, no silêncio da oração ou até mesmo quando nos visita a dor e o sofrimento. Nesses momentos está Ele ao nosso lado, querendo entrar em nosso íntimo. “Sua visita é assídua ao homem interior. Palavras mansas, agradável consolo, grande paz, maravilhosa intimidade”.1
Contudo, não raras vezes ficamos surdos a seu toque… As correrias do dia a dia, as preocupações com as coisas materiais, o egoísmo e nosso imediatismo não nos deixam ouvir a chegada de tão sublime hóspede, fazendo-nos esquecer dos autênticos valores desta vida — os tesouros que acumulamos para a eternidade — e de que já nesta Terra podemos, de alguma forma, prelibar o convívio paradisíaco para o qual Ele nos convida.
E se acontecer que, depois de tanto tocar a aldrava de nosso coração e Lhe negarmos pousada, Nosso Senhor se vá? Como nos arranjaremos? “Timeo enim Iesum transeuntem — Temo a Jesus que passa”,2 dizia Santo Agostinho…
Ele, entretanto, em sua infinita bondade nos deu uma Mãe de Misericórdia, que vem também, junto com seu Divino Filho, tocar a aldrava de nossa porta com compaixão. Mas, ao notar que esta não se abre, faz de vez em quando o papel de sacrossanta intrusa: entrando pela janela, se aproxima de nós a fim de chamar a nossa atenção e nos predispor para recebê-Lo. Feito isto, retorna para o lado de fora para, com Ele, seguir tocando.3
Peçamos a Maria Santíssima que nos ajude a abrir e manter escancarada esta porta, junto à qual Mãe e Filho tocam de forma tão comovedora, a fim de que Eles penetrem em nossa morada e nela façam a sua. E tendo sido nossos hóspedes nesta Terra, abram para nós as portas da Pátria Celestial.
1 KEMPIS, OSA, Thomas de. Imitação de Cristo. L.II, c.1, n.1.
2 SANTO AGOSTINHO. Sermo LXXXVIII, c.13, n.14. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1983, v.X, p.550.
3 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 5 jun. 1974.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Povoar não só a terra, mas sobretudo o Céu


Em primeiro lugar, é necessário compreendermos que não estamos em tempos tranqüilos, de paz, como se o mundo vivesse sob o jugo da Lei de DEUS. Não. Os estados se deixaram levar pelo espírito moderno, subjetivista, onde o egoísmo é o centro, fundamento e princípio de toda ação humana, seja na lei, na ética, na moral, ou mesmo dentro dos lares.

Nesta postagem não pretendo me estender no diagnóstico da sociedade hodierna, visto que os trágicos problemas que assolam as famílias são evidentes para qualquer coração que busca a santidade; o pecado é lei, enquanto a santidade, como já em vigor em alguns lugares, é crime.

Ora, a Igreja de Nosso Senhor, a única, é composta por homens que provém desta sociedade enferma, que às vezes parece como que em 'fase terminal'. Contudo, além da Igreja ser divina, o que já seria o suficiente para trazer paz aos ânimos perturbados, as 'doenças', como mal de pena que são, nos comunicam uma boa notícia: falta algo, o bem não se encontra plenamente aí. Esta é a função do mal de pena, diferentemente do mal de culpa, que é em si mesmo abominável.

O mal de pena, criado por DEUS, como nos ensina os Doutores Agostinho e Tomás, é um presente para nós; pois do contrário, não poderíamos jamais encontrar a cura se não soubéssemos que estamos enfermos. Grande é o bem que o mal de pena nos concede. Imagine assim, se não tivéssemos dores no corpo, este seria mutilado já na primeira semana de vida, pois não haveria nada que pudesse remetê-lo ao bem perdido, neste caso a saúde. Algo análogo ocorre com a alma, e mesmo com a Santa Igreja de DEUS, Santa e Católica; ocorre que o Senhor quer purificar-nos todos, pois sem esta purificação, perecemos. Bendita dor! Bendita cruz! Bendito sofrer!

Mas, o mal de pena não consegue chegar a ato, ou seja ao fim de seu movimento, se nossa vontade não estiver submetida aos desígnios de DEUS. Portanto, a dor e a angústia, boas em si mesmas para nos advertir a ausência de bem, tornam-se más quando não sabemos lidar com elas, ou no dizer do Doutor Angélico, 'quando não são ordenadas pela razão'.

Além da concupiscência da carne, que tanto assola os pequeninos de DEUS, temos o mundo e os espíritos que estão sob seu jugo, os anjos decaídos. Entendamos um pouco mais como é este que este espírito imundo age nos eleitos.

Ora, este espírito moderno é um espírito de retrocesso e apostasia. É o espírito da mulher de Lot, que se vira para trás (Gn XIX, 26), o dos murmuradores de Israel que, tendo o maná, tinham saudade das cebolas do Egito (Num XI). E não seria exagero dizer que a vida da sociedade atual, germinada no século XIV, quando a Cristandade acaba de alcançar o auge no século XIII, é semelhante a do cão que volta a seu vômito (Pr XXVI, 11; II Pd 2). Desta maneira, nos parece esclarecido que a modernidade não é propriamente um processo de decadência, se entendermos por decadência o processo de envelhecimento natural de qualquer organismo corruptível. E este espírito moderno, que mostra sua força com muita clareza no século XIV, como dito acima, é uma reação da carne às exigências da santidade, pois ninguém pode morrer de velhice na plenitude da idade.

Escuso-me de citar aqui várias passagens do livro de cabeceira de santos e de papas, A Imitação de CRISTO, a este respeito, por serem conhecidos de muitos dos meus leitores. Penso que todos compreendemos esta rebelião da carne às exigências da santidade que o DEUS Revelador nos trouxe plenamente em CRISTO JESUS. Mas, permitam-me citar um trecho dos sermões de Santo Antônio de Lisboa:


Quando se completaram os dias do Pentecostes, estavam todos os discípulos juntos no mesmo lugar etc.Diz Ezequiel: O espírito de vida estava nas rodas. As rodas volúveis foram os Apóstolos, que levaram o FILHO de DEUS por todo o mundo. Estas rodas, como o mesmo profeta ajunta, tinham aspecto como duma visão de pedra de crisólito. O crisólito refulge como o ouro. E daqui é que lhe vem o nome, pois chrysós, em grego, quer dizer ouro. Esta pedra parece irradiar centelhas de fogo e afugenta todo o gênero de serpentes. Simboliza os Apóstolos, que irradiaram com o ouro da graça semptiforme as centelhas da pregação, incendiando os outros. Com elas afugentaram todo gênero de demônios. Nestas rodas, como se lê no mesmo profeta, havia uma grandeza, uma altura e uma aspecto horrível. De fato, nos Apóstolos houve grandeza na retidão da doutrina, altura na elevação da superna promessa, mas aspecto horrível nas ameaças e terrores do suplício vindouro.

Daí a fala do penitente nos Cânticos: A minha alma ficou toda perturbada por causa dos carros de Aminadab. Aminadab interpreta-se ‘espontâneo’, e significa JESUS CRISTO, que espontaneamente se ofereceu por nós na cruz. Os seus carros foram os Apóstolos. Deles refere Habacuc: Os teus carros são a salvação, isto é, por sua causa dás a salvação; por sua causa, ou seja, pela pregação de convite à penitência, a minha alma, diz o penitente, ficou perturbada. Donde Habacuc: Enviaste para o mar os teus cavalos, que perturbaram as muitas águas; eu ouvi e as minhas entranhas comoveram-se. O Senhor enviou para o mar os seus cavalos, isto é, enviou ao mundo os seus Apóstolos, que perturbaram as muitas águas, isto é, muitos povos, com a sua pregação penitencial. Eu ouvi a pregação deles, diz o penitente, e as minhas entranhas, isto é, a minha carnalidade, comoveram-se”.

Alguns teólogos, conscientes de que o organismo social é regido por leis análogas às do indivíduo, tanto na ordem natural como na da graça, comparam a Cristandade do final do século XIII como a alma que sai da [i]quinta morada[/i], para usar a linguagem da Doutora de Ávila e da do Doutor da Noite Escura (Cf. Pe. María-Eugenio del Niño Jesús): já passou a noite dos sentidos, e a alma se encontra purificada, iluminada pela sabedoria divina e gozando de grande paz; mas DEUS a chama a uma altíssima união, e ainda resta nela a radical inépcia e impureza do homem velho. A altura da vocação divina à santidade e a profundidade das raízes do mal na natureza humana são as causas do drama da noite do espírito que leva à união transformante da sétima morada. O espírito moderno é, assim, o espírito que combate os santos na terrível noite purificadora; que se arraiga nos defeitos mais espirituais da carne e do mundo: a prudência carnal diante dos exageros da santidade, uma falsa misericórdia diante dos rigores da justiça divina, o horror diante da exigência do martírio (fortaleza), a nostalgia das alegrias lícitas (temperança); mas que consiste sobretudo no poder que o maligno recebe para peneirar como trigo os eleitos: "Disse, pois o Senhor a Satanás: Eis que ele está em tua mão; conserva, porém, a sua vida". (Jó II, 6).

A diferença dos organismos, ditos acima, é a seguinte: a santidade pode dar-se em poucos de modo extraordinário, mas não em toda a sociedade, porque o batismo não elimina as feridas do pecado original, e porque a natureza do homem tende na maioria ao mal; por isso os santos não reinarão senão depois da ressurreição geral, e, enquanto durar esta noite, não se deve esperar da ordem política senão que sirva de instrumento a Satanás¹. Esta última luta da carne contra o espírito purificador da alma que chega à santidade traduz-se na ordem social numa rebelião dos Estados contra a Igreja:
 
1° DEUS, sim, CRISTO, sim, Igreja não;
2° DEUS, sim, CRISTO, não, Igreja, não;
3° DEUS, não, CRISTO, não, Igreja, não;
 
Traduzindo:
 
1° O grito diabólico da Alemanha luterana.
2° O grito diabólico da França iluminista.
3° O grito diabólico da Rússia comunista.

Daí o papel fundamental das Aparições do Santo Anjo e da Virgem em Fátima: "(...) a Rússia espalhará seus erros pelo mundo (...)". As súplicas do Santo Anjo e da Virgem parecem urgir sempre mais: penitência, penitência, penitência; muitas almas vão para o inferno por não ter quem se ofereça por elas. Eis o que considero como a maior colaboração que podemos oferecer para a reforma da Igreja, sem a qual, penso, não há como ter frutos qualquer atividade apostólica: sermos vítimas de amor em reparação pelos ultrajes cometidos contra o Senhor e contra o Imaculado Coração de MARIA.

A vida interior é mais importante que a vida intelectual, a vida comunitária, a vida familiar etc. Sem a vida interior não teremos reforma alguma, se nem de nós mesmos, que dirá da Igreja, que passa dias difíceis (muito antes destes escândalos sexuais virem à mídia).

Voltemos para o diagnóstico que acusa a ação deste espírito que rege a modernidade. Para entregá-la a Satanás, DEUS espera que alma amadureça, sobretudo quanto à sabedoria e à caridade, porque o demônio combate principalmente com o egoísmo e a mentira. E os teólogos tradicionais afirmam ser este o motivo pelo qual Nosso Senhor esperou sua Igreja contar com a sabedoria de São Domingos e a caridade de São Francisco para permitir que se abrissem as portas do inferno: "Abriu o poço do abismo, e subiu uma fumaça do poço" (Ap IX, 2). Essa fumaça de Satanás que "escureceu o sol e o ar" (ibid.), ou seja, a fé e a razão, é um sutil sistema de sofismas que tem como primeiro princípio de egoísmo ementira - princípio de ordem prática - a exigência de liberdade: "O fim do diabo é separar de DEUS a criatura racional; razão por que desde o princípio ele tentou separar o homem da obediência ao divino preceito. E a mesma aversão a DEUS tem razão de fim quanto é apetecida sob pretexto de liberdade, segundo o que se lê em Jeremias (II, 20): 'Tu, desde o princípio, quebrastes o meu jugo, rompeste os meus laços, e dissestes: Não servirei'. Quando, pois, alguns são conduzidos a esse fim pecando, caem sob o governo e direção do diabo" (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, III, q. 8, a. 7). E estes teólogos concluem dizendo ser muito acertado dar ao mal chamado espírito "moderno" o nome de "liberalismo".

E mais claro ainda percebe-se em que mal se encontra a sociedade liberal e suas apetências quando, por exemplo, vemos suas produções em massa de produtos promíscuos, pérfidos, sujos e com o odioso fedor de enxofre que trazem aos que nelas se encerram drasticamente. E toda analogia destes gritos liberais com o de Lúcifer, Adão, Caim (...), Judas, Lutero, e todos os que se submetem a este esquadrão, longe de parecer um devaneio pueril, é a mais pura claridade diante destes problemas tão difíceis de resolver, ou mesmo impossível, somente sob a luz da razão. O que não é difícil de constatar é a natureza e causa das atrocidades, guerras e crimes impensáveis que se surgiram depois do ‘cogito ego sum’ cartesiano, do agnosticismo kantiano, do niilismo nietizchiano, do materialismo marxista e tantos sofismas que se ergueram da negação, seja parcial ou total, da metafísica.

A urgência do pedido de Fátima, ou seja, a reparação pelos pecadores, onde somos os primeiros, para a glória de DEUS e por meio de MARIA Santíssima, é para nós a única solução dos problemas, sejam os de nossos lares, sejam os de nossa nação, sejam os da Igreja de Nosso Senhor.

Infelizmente, a mentalidade liberal incentivou as almas a uma pastoral, uma vida apostólica, sem estarem sob o julgo dos dogmas cristãos, sem estarem solidificados na vida espiritual, a vida da alma. Entregues aos apetites da carne, não mais submetidas à razão, os cristãos mais desejosos de viver a santidade, se viram diante de limites intransponíveis, caindo muitas vezes, e alguns, para tristeza de qualquer fiel católico, jamais levantaram, apostatando a fé, caindo em heresias, e perdendo assim o maior tesouro de suas vidas: JESUS Sacramentado, que em toda Santa Missa quer ardorosamente o nosso coração, mesmo sendo um presépio inóspito, muito pior que o dos animais, como que Seu Céu, onde ELE possa Reinar e dar assim a este coração, proporcionalmente, claro, a mesma alegria que tem na TRINDADE Santíssima.

Muitos católicos, levados por este espírito liberal subjetivista, ainda que ardentes da glória extrínseca de Nosso Senhor, venderam a glória do Senhor pela 'liberdade' do homem sem DEUS, 'livrando-o' de dogmas, condenações e definições, estas que eram a máxima manifestação da misericórdia de DEUS, no dizer de São Paulo: que pai não corrige e mesmo açoita seu filho? Mas, cegos, os cristãos assim foram navegar em direção as trevas por estarem ofuscados pela luz da verdade que exige daqueles que a amam, a renúncia e o último lugar, a humildade de reconhecer que suas obras são feitas em DEUS, e não por usas próprias forças: "E a causa desta condenação é: a luz veio ao Mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; pois eram más as suas obras. Porquanto todo aquele, que pratica o mal, aborrece a luz, e não se chega para a luz, para que não sejam argüidas as suas obras; mas aquele, que (obra) pratica a verdade, chega-se para a luz, para que suas obras sejam manifestas, porque são feitas em DEUS" Jo III, 19-21.

Já me alonguei demais. E o que quero afirmar veementemente não é outra coisa senão assumir a nossa vocação de povoar não só a terra, mas principalmente o céu, reparando e oferecendo-nos como vítimas de amor.

Imaculado Coração de MARIA Santíssima, sede nossa salvação!
Salve MARIA!

¹Certamente houve muitas comunidades santas, como a dos primeiros cristãos, houve não poucos reis santos; entretanto, nunca houve nem pode haver uma sociedade política completa, com autoridades e leis, em que a santidade seja o comum. E, como só a virtude heróica pode resistir a Satanás solto, poderão resistir a ele pessoas, famílias e grupos, mas - se não se abreviam os tempos - os Estados terminam por cair nas mãos dele. Os raros justos que chegam a chefes dos Estados modernos terminam mártires, como García Moreno.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A VIA DA INFÂNCIA ESPIRITUAL

Garrigou-Lagrange, O.P. 

Nosso Senhor diz aos seus Apóstolos: Se vos não converterdes e vos não tornardes como meninos, não entrareis no reino dos céus. São Paulo acrescenta: o Espírito Santo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus, e nos aconselha freqüentemente uma grande docilidade ao Espírito Santo. Esta docilidade se encontra particularmente na via da infância espiritual, recomendada por muitos santos e, ultimamente, por Santa Teresa do Menino Jesus. Esta via, tão fácil e proveitosa para a vida interior, é muito pouco conhecida e seguida.

Por que pouco seguida? Porque muitos imaginam erroneamente que esta é uma via especial, reservada às almas que se conservaram completamente puras e inocentes; e outros, quando lhes falamos desta via, pensam em uma virtude pueril, uma espécie de infantilidade, que não poderia lhes convir. Estas idéias são falsas. A via da infância espiritual não é nem uma via especial nem uma via de puerilidade. A prova é que foi Nosso Senhor, ele mesmo, quem a recomendou a todos, mesmo àqueles responsáveis pelas almas, como os Apóstolos formados por Ele.

* * *

Para se ter uma visão de conjunto da via da infância espiritual, é preciso de início notar suas semelhanças e, em seguida, suas diferenças com a infância corporal.

As semelhanças são patentes. Quais as qualidades inatas das crianças? Em geral, elas são simples, sem nenhuma duplicidade, são ingênuas, cândidas, não representam, mostram-se tais como são. Ademais, têm consciência de sua deficiência, pois precisam receber tudo de seus pais, o que as dispõe à humildade. São levadas a crer simplesmente em tudo o que dizem as suas mães, a depositar uma confiança absoluta nelas, e a amá-las de todo seu coração, sem cálculo.

Quais as diferenças entre a infância ordinária e a infância espiritual? — A primeira diferença é notada por São Paulo: Não sejais meninos na compreensão, mas sede pequeninos na malícia. A infância espiritual se distingue da outra pela maturidade do julgamento e de um julgamento sobrenatural inspirado por Deus.

Uma segunda grande diferença é indicada por São Francisco de Sales: na ordem natural, quanto mais o filho cresce, mais ele tem de se tornar auto-suficiente, pois um dia seu pai e sua mãe lhe faltarão. Ao contrário, na ordem da graça, quanto mais o filho de Deus cresce, mais ele compreende que não poderá jamais se bastar e que dependerá sempre intimamente de Deus. Quanto mais ele cresce, mais ele deve viver da inspiração especial do Espírito Santo, que vem suprir por seus dons a imperfeição de nossas virtudes, de modo que, no fim, o filho de Deus torna-se mais passivo sob a ação divina do que entregue à sua atividade pessoal e no fim entra no seio do Pai, onde encontrará a beatitude por toda a eternidade.

Os moços e as moças, quando chegam à idade adulta, deixam seus pais para viverem suas vidas; mais tarde, o homem de quarenta anos vem com bastante freqüência visitar sua mãe, mas ele não depende dela como antes; é ele agora que a sustenta. Ao contrário, o filho de Deus, ao crescer, se é fiel, torna-se mais e mais dependente de seu Pai, até que nada faça sem ele, sem suas inspirações ou seus conselhos. Então, toda a sua vida é banhada pela oração; é a melhor parte que não lhe será tirada. Santa Teresinha de Lisieux o compreendeu assim. Ela, após ter atravessado a noite do espírito, chegou desse modo à união transcendental nela.

Tais são as características gerais da infância espiritual: suas semelhanças e suas diferenças com a infância corporal.

* * *

Vejamos agora as principais virtudes que se manifestam nela.

De início, a SIMPLICIDADE, a ausência total de duplicidade. Por que? ... porque o olhar desta alma não procura senão a Deus e vai direito a ele. Assim, verifica-se aquilo que é dito no Evangelho: O teu olho é a lucerna do teu corpo. Se teu olho for simples todo teu corpo será luz. Mas, se o teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas [8]. Do mesmo modo, se a intenção de tua alma é simples e direta, pura e sem duplicidade, toda a tua vida será iluminada como o rosto de uma criança.

Então, a alma simples, que tudo sempre considera com relação a Deus, acaba por vê-lo nas pessoas e eventos; em tudo o que acontece, ela vê aquilo que é desejado por Deus, ou, ao menos, que é permitido por ele para um bem superior.

HUMILDADE. Ao seguir esta via, a alma torna-se humilde. A criança tem consciência de sua deficiência, ela depende de sua mãe para tudo, e pede constantemente sua ajuda, ou se refugia perto dela à menor ameaça.

Do mesmo modo, o filho de Deus sente que, deixado a si mesmo, ele não é nada; ele se lembra com freqüência das palavras de Jesus: Sem mim, não há nada que possais fazer. E assim, ele tem uma necessidade instintiva de se esquecer de si mesmo, de depender de Nosso Senhor, de se abandonar a Ele. A alma cessa de se estimar de modo vão, de querer ocupar um lugar no espírito dos outros; ela desvia seu olhar de si mesma.

Por causa disso, ela combate muito eficazmente o amor próprio. E, com o sentimento de sua deficiência, ela experimenta a necessidade de se apoiar constantemente em Nosso Senhor e de ser em tudo guiada e dirigida por ele. Ela se lança em seus braços, como a criança nos braços de sua mãe. Por isso, o espírito de oração se desenvolve muito nela.

FÉ. Assim como o filho crê sem hesitar e firmemente em tudo o que sua mãe lhe diz, o filho de Deus, acima de todo raciocínio, de todo exame, baseia-se totalmente na palavra de Nosso Senhor. “Jesus o disse”, seja por si mesmo, seja por sua Igreja, isto é suficiente para que ele não tenha nenhuma dúvida em seu espírito.

Que se segue? Assim como a mãe fica feliz em poder instruir seu filho, tanto mais quanto ele se mostrar atento, Nosso Senhor se compraz em manifestar a profunda simplicidade dos mistérios da fé aos humildes que o escutam. Ele dizia: Eu te dou graças, ó Pai, por ter escondido estas coisas dos prudentes e dos sábios e de as ter revelado aos pequenos. A fé dessa alma torna-se então penetrante, saborosa, contemplativa, radiante, prática, fonte de mil conselhos excelentes. O espírito da fé leva a ver os mistérios revelados, as pessoas, os fatos como Deus os vê; vê-se Deus em tudo.

Mesmo que o Senhor permita a noite escura, a alma a atravessa segurando sua mão, como o filho segura a mão de sua mãe, que a protege.

A CONFIANÇA torna-se, desde então, mais e mais firme, inteira. Por que? ... porque ela repousa no amor de Deus por nós, em suas promessas, nos méritos infinitos de Nosso Senhor.

Como a criança está segura de sua mãe, porque se sabe amada por ela, a alma de que falamos está segura de Deus. Ela não pode duvidar de sua fidelidade em manter suas promessas: pedi e recebereis. Ela não se baseia em seus próprios méritos, em sua sorte pessoal, mas nos méritos infinitos do Salvador, que são para ela; do mesmo modo, os bens do pai são para seus filhos que ainda não possuem bens pessoais.

A fragilidade a desencoraja? De modo algum. O filho não se desencoraja por causa de sua deficiência. Ao contrário, ele sabe que é por causa de sua impotência que sua mãe está sempre pronta para protegê-lo. Do mesmo modo, Nosso Senhor sempre protege os pequenos e os pobres que se fiam nele. O Espírito Santo, que ele nos enviou, é chamado “Pater pauperum”.

Esta alma não confia senão em Deus, em Nosso Senhor e na Virgem, e naqueles que vivem de Deus, como a criança não confia senão em sua mãe e naquelas pessoas a quem sua própria mãe o confia por um momento.

É uma confiança total, mesmo nas horas mais graves. Nós nos lembramos então do que dizia santa Teresinha: “Senhor, vós a tudo vedes, tudo podeis, e vós me amais”.

O único temor desta alma é o de não amar o bastante a Nosso Senhor, de não se abandonar totalmente a Ele.

A CARIDADE é o amor de Deus por ele mesmo, e das almas em Deus, para que elas o glorifiquem no tempo e na eternidade.

A criança pequena ama sua mãe de todo seu coração, mais que os carinhos que recebe dela; ela vive de sua mãe.

Do mesmo modo, o filho de Deus vive de Deus e o ama por si mesmo, por causa das infinitas perfeições que nele transbordam. O que este filho de Deus ama, não é a sua própria perfeição, mas o próprio Deus, sobre o qual ele se apóia.

A este amor ele refere tudo, é um amor delicado, simples, que inspira a piedade filial e uma grande caridade pelo próximo, na medida em que este é amado por Deus e chamado a o glorificar eternamente.

O filho de Deus, porém, é tão prudente como simples: simples com Deus e as almas de Deus, ele está sob a inspiração do dom de conselho e é prudente com aqueles em quem não podemos ter confiança.

Ele é deficiente, mas é do mesmo modo forte, pelo dom de fortaleza que se manifestou nos mártires, e até nas jovens virgens e nos velhos.

Um modelo impressionante de infância espiritual se encontra em uma alma santa, que atingiu, em meio das maiores dificuldades, uma grande intimidade com Nosso Senhor; a Venerável Madre Marie-Thérèse de Soubiran, fundadora da Sociedade de Maria Auxiliadora. Sua vida admirável nos mostra a enorme superioridade da vida sobrenatural plenamente abandonada a Nosso Senhor, acima da atividade natural das pessoas melhor dotadas e mais enérgicas, que se apóiam sobre elas mesmas, que se esquecem de pedir a benção de Deus.

Sua vida é um comentário das palavras do Salvador: Eu te dou graças, ó Pai, por ter escondido estas coisas dos prudentes e dos sábios e de as ter revelado aos pequenos.
(Publicado em La vie spirituelle no. 302, dez. 1945. Tradução: PERMANÊNCIA)

O discernimento filosófico da experiência mística (II)





I. Misticismo e Loucura
A índole patológica da experiência mística foi inúmeras vezes afirmada por psicólogos e psiquiatras. Algumas dessas teorias são incontestavelmente desprovidas de qualquer valor, por exemplo, a de James Leuba, segundo o qual o elemento constitutivo do misticismo seria o "êxtase", que não passaria de uma queda na inconsciência, assimilável a uma crise de epilepsia ou à embriaguez profunda. Semelhante tese só pode ser sustentada por ignorância ou por má fé. Fosse embora o êxtase o que sustenta Leuba, em todo o caso é absolutamente falso constituir ele o âmago do misticismo cristão. Perderíamos tempo aduzindo testemunhas concordes de nossos místicos, tão evidente é a questão para qualquer conhecedor dos fatos.
Igualmente desprovida de valor é a opinião corrente entre os leigos consoante a qual o misticismo consistiria em visões, profecias, levitações, e outros fenômenos estranhos. O doutor cristão da mística, S. João da Cruz, exarou do iluminismo sob todas as formas, tremenda sentença condenatória, que já tivemos ocasião de resumir2 pelo que não voltaremos aqui sobre o assunto.
Bem mais digna de nota é a teoria de Pierre Janet. Na ponderosa obra De l'angoisse à l'extase, o mestre do Collège de France refere, com extraordinária minúcia, a observação, prosseguida durante 22 anos, duma doente designada pelo pseudônimo de Madeleine, que apresentava fenômenos místicos comparáveis, segundo Janet, aos da grande Teresa de Ávila. 
Reduzida a um resumo esquelético, a anamnese apresenta-se como segue. Madeleine nasceu no norte a França, em 1852, de pai industrial, muito emotivo, utópico, exaltado; de mãe nervosa. O casal procriou quatro filhos, vindo Madeleine em terceiro lugar. Infância excepcionalmente doentia; gênio muito impressionável; sonhadora, religiosíssima. Devido às doenças recebeu instrução relativamente deficiente (para pessoa de sua classe social em França). Entretanto, exprimia-se muito bem por escrito, lia Pascal, conhecia várias línguas, pintava agradavelmente. A partir dos onze anos apresentou fenômenos nevropáticos caracterizados: obsessões, alucinações, escrúpulos torturantes, períodos de depressão com absoluta imobilidade.
Aos 19 anos Madeleine partiu para a Alemanha a fim de ser professora numa família e... desapareceu! Durante quase um quarto de século procuram-na debalde os parentes. Que coisa havia sucedido? Madeleine fora acometida pelo que Janet denomina "a mania da ilha deserta". Incapaz de resolver as dificuldades inerentes à vida social, Madeleine fugiu.
Para justificar-se aos próprios olhos, pretendia seguir o ideal de S. Francisco de Assis, e, durante 20 anos viveu não só na pobreza como na completa miséria. Mais tarde declarava: "Se a miséria matasse, eu não existiria mais". O pouco que conseguia ganhar (6 vinténs diários) partilhava-o ainda com outros pobres; tornou-se enfermeira benévola de mulheres cancerosas. Tudo isso entremeado de alucinações, de idéias de perseguição. Escreveu cartas ao Presidente da República francesa; esteve em dificuldades com a polícia; por três vezes foi encarcerada. Por fim, venceu-a a moléstia. A dificuldade de locomoção que desde criança sentira, agravou-se consideravelmente durante o inverno de 1892 e 1893. Para fazer a entre de seus trabalhos de costura, via-se Madeleine obrigada a caminhar longas horas patinhando na neve; inchavam-se-lhe os pés, durante a noite, tornavam-se violáceos e sobremodo doídos. Com espanto percebeu que em conseqüência da contração dos músculos, começava a caminhar sobre as pontas dos pés, qual dançarina de Ópera. Resistiu quanto pôde, afinal capitulou: pelo espaço de quatro anos lá foi de hospital em hospital até que enfim os facultativos declararam tratar-se de "moléstia nervosa", já que todos os diagnósticos haviam sempre sido desencontrados... Internaram então a Madeleine no hospício da Salpêtrière, onde entrou para o serviço do Dr. Janet.
Ao cabo de 7 anos, tendo melhorado, regressou para junto da família, sempre sob a fiscalização de Janet. Viveu ainda 14 anos, pobremente, muito religiosa, serviçal, dedicando-se a uma irmã tuberculosa, e cuidando de várias crianças. Sofria das pernas, de um desvio do tórax, de crises cardíacas, e faleceu piedosamente em 1918.
O misticismo de Madeleine compreendia fenômenos quer físicos, quer psíquicos. As manifestações somáticas eram: 
1o., a contração muscular que obrigava a doente a se ter nas pontas dos pés. Madeleine interpretava esse fato como sendo o da "levitação" e como um começo de "assunção"; periodicamente anunciava que os pés não mais pousavam sobre a terra e que ela estava prestes a subir como um balão. Queria a todo o transe peregrinar a Roma para ser elevada ao Céu em presença de Sua Santidade.
2o., o que a Madeleine denominava "estigmas" e comparava às chagas de S. Francisco; não passavam, na verdade, de pequenas bolhas que ao arrebentar deixavam correr um pouco de serosidade misturada com sangue.
Muito mais complexos e interessantes os fenômenos psíquicos, constitutivos do delírio místico de Madeleine. A psicose evoluía por grandes crises apresentado fases diversas e podendo prolongar-se por vários meses. O ponto de partida era um esta de equilíbrio precário, de quase normalidade. Rompido esse equilíbrio, perturbada a normalidade, Madeleine entrava no que ela denominava "estado de tentação", o mais prolongado de todos. Dúvidas e escrúpulos de toda espécie acometiam a doente; interrogava constantemente Janet, sem que as respostas lograssem satisfazê-la; suplicava que lhe encontrassem um diretor de consciência o qual discerniria a autenticidade de seu misticismo, a sobrenaturalidade de sua missão junto ao Papa e lhe assegurasse que subiria ao céu, etc, etc. Exigia um diretor e de antemão dele duvidava. À tentação seguia-se a secura, de menor duração. Em vez da inquietude, da dúvida, a inércia, a apatia. Madeleine mantinha-se, então, sentada, imóvel, demonstrando profundo abatimento; nada lograva interessá-la; sentia tédio, indiferença, tudo parecia-lhe vazio. Sobrevinha enfim o delírio sob uma dupla forma, dolorosa e feliz. A primeira era uma psicose melancólica ansiosa, com agitação intensa: Madeleine corria à polícia para denunciar conspirações, profetizava catástrofes privadas e públicas, assistia pela imaginação a cenas de assassínio e de canibalismo; acreditando-se no inferno desesperava-se e sofria os tormentos dos réprobos.
Felizmente este estado lamentável só se prolongava pelo espaço de dois ou três dias; seguia-se-lhe o delírio inverso: a consolação, o êxtase. (Donde o título da obra: De l'angoisse à l'extase).
No delírio de beatitude, a ação exterior era extremamente reduzida. A extática conservava-se em absoluta imobilidade, sem reagir aos estímulos externos. Em vão as enfermeiras procuravam despertá-la, sacudindo-a, lançando-lhe água fira, colocando-lhe sinapismos; Madeleine permanecia em torpor completo. Não havia, no entanto, nem paralisia, nem anestesia, mas simplesmente desinteresse absoluto pela ação. Ao lado da inércia motora, notava-se atividade afetiva enorme e sempre otimista. A doente vivia uma série de romances interiores, de coloração religiosa, dos quais ela e Deus eram os dois protagonistas. Imaginava compreender todos os mistérios da religião, ouvia revelações estupendas, recebia inúmeras provas de amor. Acreditava-se uma grande santa; sentia-se até divinizada: "Je suis Dieu!" exclamava. Não é de surpreender que torrentes de júbilo, de perfeita felicidade, lhe inundassem a alma. Ao êxtase, seguia-se o estado de consolação, que apresentava as mesmas características, embora mais atenuadas. Pouco a pouco tudo se acalmava e Madeleine voltava ao quase equilíbrio primitivo.
O ciclo deste misticismo patológico pode pois resumir-se em sete fases: partindo de um estado subnormal, a doente passava por inquietações e dúvidas; caía na inércia, na apatia, soçobrava no desespero e na tortura; repentina viravolta a soerguia, levando-a ao êxtase beatificante; acalmava-se no otimismo da consolação; revertia ao estado inicial, para encetar outro ciclo análogo.
Como interpretar esse delírio místico? Janet explica-o, como era de prever, em função de suas teorias psicológicas. Distingue oito níveis mentais hierarquizados e admite a passagem de um a outro seja no sentido do progresso, seja no do regresso. Todas as deficiências e doenças mentais, explicar-se-iam quer por se ter o indivíduo detido a nível inferior, sem progredir (p.ex. o débil mental) quer por ter decaído a um nível mais baixo, em conseqüência de uma queda da tensão psicológica (p.ex., o paranóico).
Até mesmo no mas normal dos indivíduos, produzem-se contínuas oscilações da tensão psíquica, segundo está mais ou menos atento, ativo, etc.; durante o somo a queda é profundo; ao despertar, porém, volta logo ao nível habitual. — Pelo contrário, uma baixa contínua e acentuada provoca doenças mentais; estas, apesar de tão variadas, nada seriam, segundo Janet, senão graus da mesma depressão mais ou menos profunda. Tais graus são determinados pelo número maior das funções superiores alteradas e pelo lugar que ocupam na hierarquia, as funções conservadas e exageradas. A aparência tão diversa revestida pelas doenças mentais vir-lhes-ia simplesmente dessas diferenças de nível na depressão psíquica. O ataque de epilepsia, por exemplo, seria uma regressão ao "estágio de agitação difusa" que ocupa, segundo Janet, o grauínfimo na escala das tendências. Ao contrário, o delírio de interpretação é um perturbar-se das tendências superiores. Um indivíduo que normalmente se encontra no "estágio experimental" (vértice da hierarquia) desce um degrau e se estabiliza no "estágio racional": as funções lógicas não só permanecem intactas como até se exageram; falta entretanto a apreciação correta dos fatos empíricos. Na psicastenia, verifica-se a perturbação das tendências médias, mais precisamente, das funções deliberativas. O psicastênico vive na dúvida, atordoado pelos escrúpulos, pelas hesitações infinitas; não consegue deliberar corretamente nem por termo à deliberação, tomando uma resolução firme; necessita de alguém que delibere e decida por ele. Suponhamos uma baixa maior de tensão e o "estado" psicastênico tranformar-se-á em "delírios psicastênico". Paralisa-se desta feita toda e qualquer deliberação e reflexão; os sentimentos desencadeiam-se com instantaneidade e força enormes, sem controle algum. Variáveis como são os fatos, as convicções mudarão em conseqüência; e resultará uma série de afirmações absolutas e contraditórias. Tal era o caso de Madeleine. Que desde a infância tenha vivido num estado de psicastenia mais ou menos pronunciada, não faz a mínima dúvida: os escrúpulos que a atormentavam, a abulia, o desejo de direção, o mórbido ascetismo que a levava a privar-se, não por virtude, senão por incapacidade de gozar, a tendência a fugir das dificuldades, em vez de tentar vencê-las — são outras tantas manifestações evidentes de psicatenia. Procurava compensar esta debilidade refugiando-se num mundo imaginário que não lhe oporia resistências. Com efeito, Madeleine dirigia a capricho suas divagações, vivendo uma série de histórias fictícias, de romances, nos quais representava, já se vê, um papel simpático. Sobreveio então uma nova baixa de tensão psíquica e Madeleine caiu no que ela denominava "estado de tentação" seguida pelo "estado de secura" que nada mais eram senão um fenômeno psicastênico acentuado, caracterizado pela incapacidade de decisão e logo de ação, com esta diferença que, na "tentação" esta incapacidade se revelava sob forma de ansiedade, na "secura" sob forma de inércia. Nova queda de energia mental e Madeleine retrocedia do estado psicastênico ao delírio psicastênico, o qual, à primeira vista, apresentava duas formas antagônicas: tortura e beatitude; contraste afetivo que todavia não deve fazer olvidar a unidade da psicose: é como o direito e o avesso do esmo processo; numa e noutra fase deparamos com afirmações categóricas: "Madeleine está no Céu — Madeleine está no inferno; Madeleine está divinizada — Madeleine está possessa"; a doente oscilava entre sentimentos desoladores e consoladores, entre o amor desalentado e o amor satisfeito, porque o psicastêncio, como fraco que é, procura amparao, donde a necessidade de afeição que o crucia; precisa adorar e ser adorado, lamenta não conseguir realizar esse ideal e não o consegue, porquanto lhe falta a tensão psíquica necessária ao estabelecimento dessa relações afetivas. Resta-lhe apenas um recurso: a fuga.
Assim Madeleine reclamava um coração amigo no qual se expandiria, entretanto fugiu de casa para viver solitária; posteriormente, baixando ainda mais a tensão psíquica, fugiu novamente e asilou-se na loucura; pôde enfim realizar no delírio as aspirações afetivas até então frustradas; viveu doravante um romance divino no qual Deus ora a maltratava, ora a deliciava. na demência, Deus lhe aparecia já como mestre, já como esposo; numa palavra, Madeleine conseguiu realizar, pela imaginação e a afetividade, todas essas relações sentimentais que houvera desejado, sem ter força para travá-las com indivíduos de carne e osso, dotados de caráter próprio, de vontade, de inclinações, que nem sempre corresponderiam às de Madeleine, com os quais forçosamente entraria em conflito, enquanto que ao delirar, ela dirigia, como melhor lhe saiba, o enredo dos desvairados romances.
Pensamos em não trair o pensamento de Janet, ao resumirmos numa frase a psicologia de Madeleine: ela sonhava e delirava, por ser demasiado débil para viver normalmente.
Só teríamos que louvar e nos instruir, estudando a obra do mestre francês, não houvesse ele generalizado o que observara num só caso e afirmado que todo misticismo não passa de uma das variedades de delírio psicastênico. Repetidamente comparou Madeleine a Santa Teresa, identificando-lhe as experiências.
Rejeitamos a assimilação, não apenas como católico — pois assim deprecia os nossos maiores santos — senão também como psicólogo — pois a teoria patológica não corresponde à realidade dos fatos. Tão patente a diferença que foi reconhecida até por um psicólogo notoriamente anti-religioso como Henri Delacroix. Embora tivesse ele escrito as suasÉtudes d'histoire et de psychologie du mysticisme no intento confessado de encontrar uma explicação puramente naturalística do misticismo, insurgiu-se entretanto contra a pretensão de assimilar os grandes místicos aos loucos: "Si les grands mystiques n'ont pas échappé aux tares névropathiques qui stigmatisent les organismes exceptionnels, il y a en eux une logique constructive, une expansion réalisatrice, un génie, en un mot, qui est l'essentiel". Henri Bergson escreveu no mesmo sentido: "Quand on prend à son terme l'évolution intérieure des grands mystiques, on se demande comment ils ont pu être assimilés à des malades. Certes, nouv vivons dans un état d'équilibre instable, et la santé moyenne de l'esprit, comme d'ailleurs celle du corps, est chose malaisée à definir. Il y a pourtant une santé intellectuelle solidement assise, exceptionnelle, qui se reconnait sans peine. Elle se manifeste par le gôut le l'action, la faculté de s'adapter et de se réadapter aux circonstances, la fermeté jointe à la souplesse, le discernement prophétique du possible et de l'impossible, un esprit de simplicité qui triomphe des complications, enfin un bon sens supérieur. N'est-ce pas précisément ce que nous trouvons chez les mystiques dont nous parlons? Et ne pourraient-ils pas servir à la définition de la robustesse intelectuelle?"3 Sen os objetassem que Delacroix e Bergson, por não serem psiquiatras, carecem de autoridade, responderiamos que P. Quercy, psiquiatra não-católico, na sua obra L'hallucination, publicada quatro anos após o livro de Janet, consagrou à Santa Teresa longo e exaustivo estudo, chegando a conclusões que põem em relevo a perfeita sanidade mental da grande mística.
Ao nosso ver, mister é distinguir cuidadosamente três classes de fenômenos: 1o. as psicopatias, que parodiam o misticismo; 2o. certos casos peculiares de misticismo acompanhados (e não constituídos) por tal ou tal manifestação patológica4; 3o. o misticismo em si, que nada tem a ver com a psicose.
Que certos doentes parodiem os místicos, pondera Bergson, prova tão pouco contra os místicos, quanto as imitações patológicas de Napoleão provam contra o grande corso. Madeleine lera a autobiografia de Santa Teresa de Ávila, como também a obra do Padre Poulain, Les grâces d'oraison; ao delirar, reproduziu o que a impressionara nos escritos da grande carmelita. Não devem pois surpreender certas similitudes aparentes entre o místico e o nevropata. O único critério psicológico que nos permitirá discernir um do outro é o exame comparativo dos respectivos "comportamentos". Devemos confrontar as atitudes, as atividades exteriormente constatáveis de Madeleine e de Santa Teresa, para verificar se coincidem ou se diferem.
Comparando os escritos de ambas, averiguamos em seguida o superior talento da espanhola e a mediocridade intelectual da francesa. o que Madeleine escreve de melhor dá a impressão do já lido, do plagiado. Entretanto, diferença de valor intelectual não equivale a diferença quando à sanidade mental. Janet apressa-se em nos relembrar que Auguste Comte também esteve num hospício, o que não o impediu de ser profundo pensador. Fácil é retrucar que o Cours de Philosophie Positive não foi composto durante o internamento do filósofo. Que saibamos, nenhuma obra de gênio saiu até agora dum hospício. Ora, Santa Teresa escreveu todas as obras em plena "crise mística", para falar como Janet.
Os escritos de Madeleine abundam e superabundam em incoerências, em absurdos, em idéias indiscutivelmente delirantes (p.ex., profecias de cataclismas, denúncias de conspirações). Nada de semelhante em Santa Teresa. — E as visões, como explicá-las? As visões, como muito bem observou o Dr. Quercy, apresentam uma característica notável: afinalidade; harmonizam-se sempre com as preocupações do momento, não aparecem como parasitas ou corpos estranhos que venham perturbar ou interromper o fluxo da vida psíquica; pelo contrário, ligam-se naturalmente ao presente, ao passado, ao futuro; são imediatamente utilizáveis porque se unem estreitamente à ação.5
Os devaneios de Madeleine não apresentam nenhum desses característicos, e Janet é demasiado inteligente para não haver percebido a diferença; procura escapar à dificuldade graças a um expediente pouco digno de tão grande psicólogo: lemos Santa Teresa, pretende ele, em edições expurgadas, ad usum Delphini; quem sabe o que conteriam os originais? Por nossa vez podemos perguntar: o que se não lograria provar lançando mão de tais argumentos? Aliás, no caso de Santa Teresa, podemos justamente fazer a prova do não expurgo. Com efeito, possuímos alguns manuscritos da santa; o original da autobiografia, por exemplo, conserva-se na biblioteca do Escorial; foi reproduzido fototipicamente e cada qual tem o meio de averiguar a perfeita concordância entre o texto hodierno e o que escreveu Teresa. — Teria ela expurgardo o próprio manuscrito antes de passá-lo a limpo? Mesmo isso seria uma prova evidente de sanidade mental, já que só um homem normal pode discriminar entre afirmações delirantes e as sensatas. A própria Madeleine, tendo melhorado e deixado o hospício, quando Janet lhe fazia recordar a pretensa "assunção" de outrora, ria-se: "Est-ce possible que c'est moi que disais des bêtises pareilles?" Espantava-se justamente porque cessara o delírio. Por conseguinte, para que Santa Teresa pudesse ela própria expurgar as suas obras, temos que supor que as tivesse redigido em estado delirante e corrigido uma vez verificado o retorno à normalidade. A essa hipótese opõem-se duas razões peremptórias. Em primeiro lugar, Teresa conhecia o misticismo mórbido; descreveu até mesmo os falsos êxtases; perita na auto-crítica, receava a ilusão e por isso reclamava insistentemente o controle dos sábios de seu tempo. Torna-se inacreditável que ela, tão leal e sincera, haja friamente feito desaparecer de suas obras passagens que julgasse delirantes. Bem ao contrário, teria sido a primeira a denunciar como ilusório o seu misticismo. Mais, ainda. Possuímos cartas de Teresa, escritas em plena "crise mística", como possuímos cartas de Madeleine escritas nas mesmas condições. Ora, estas lhe refletem o delírio, já se vê: escreve ao presidente da republica denunciando conluios, relata à própria irmã festins canibalescos aos quais haveria assistido; queixa-se de ser perseguida pela maçonaria etc, etc. O epistolário de Santa Teresa — além de constituir uma obra prima literária — longe de encerrar idéias delirantes, demonstra sólido bom-senso, arguta diplomacia, humourcintilante.
Desta primeira confrontação resulta que Teresa gozava de equilíbrio intelectual e Madeleine encontrava-se num estado de desequilíbrio patente. mas existe um outro equilíbrio, o social, que vai tornar ainda mais claro o diagnóstico discriminativo.
Os psiquiatras insistem sobre a importância básica da conduta em sociedade, como pedra de toque da sanidade mental. Ribot chega até a afirmar que o critério último para distinguir o inventor de gênio daquele que sofre dum delírio de imaginação, é a fecundidade do invento, a sua adaptabilidade às circunstâncias, ao meio. Comparemos pois os comportamentos sociais de Madeleine e de Santa Teresa: Janet afirma que o traço característico da atitude exterior de Madeleine é o desinteresse pela ação, a esterilidade social. De coração ótimo, muito serviçal por natureza, a pobrezinha, durante os anos de loucura, houve-se como arrematada egoísta. Imersa na mais completa introversão, substituía o agir por estéril jogo de imagens e sentimentos. Recusava-se com obstinação a prestar o mínimo serviço; não tomava a menor parte nos sofrimentos alheios. Quando, por exemplo, lhe anunciaram a morte lamentável dum seu cunhado que deixava a família em condições angustiosas, Madeleine externou a maior indiferença. Agitava-se, porém, sobremodo pelo pensamento, falava de força e de amor, predizia triunfos, proclamava a sua missão — mantinha-se entretanto na inércia absoluta. Acreditava piamente que Deus lhe ordenava a ida a Roma para ver o Papa. Falava, e muito, mas apesar das insistências de Janet, que cumprisse as ordens divinas, não dava um passo nesse sentido, salvo uma vez quando de olhos fechados deitou a correr pelo pátio do hospício, voltando logo após à enfermaria. Parecia desejar muitas, coisas, porém logo que se tratava de passar à decisão e ainda mais à execução, perturbava-se e se paralisava. Bastava que se lhe propusesse uma resolução a tomar para provocar intermináveis obsessões. Sobre ste ponto Janet resume-se da seguinte maneira: "L'observation de Madeleine nous montre de toutes les manières son impuissance d'action sociale. On peut observer cette impuissance sociale particulière, en remarquant que Mdeleine est restée pendant sept ans en relation constante, dans un dortoir commum, avec un grand nombre d'autres malades; celles-ci étaient des femmes jeunes pour la plupart, très nerveuses, très suggestibles, très faciles à influencer et je craignais un peu au début, que Madeleine ne fut le point de départ d'une petite épidémie de délire religieux. Il n'en a absolument rien été et Madeleine n'a jamais eu l'ombre d'une influence sur aucune de ces pauvres femmes. Elle le reconnaìssat elle-même... Bien mieux, j'ai remarqué que beaucoup de ces malades vivant ensemble plusieurs mois, avaient formé entre elle des relations affectueuses quei ont survécu à leur séjour à l'hôpital. Madeleine n'était pas dépourvue de sentiments affectuex; elle disait souvant de ses compagnes: "Je les aime profondément, leurs misères physiques m'affectent autant que leurs misères morales!..." Eh bien, malgré ces bonnes dispositions, Madeleine n'a jamais eu d'amies dans la salle, et après avoir quitté l'hôpital, n'a conservé des relations avec personne, si ce n'est avec moi. Cette impuissance des psychasthéniques à faire des camarades et des amis, à conserver des relations avec d'autres, est tout à fait caractéristique".
Sofresse Santa Teresa de delírio psicastênico e deveríamos nela observar idêntico "comportamento", idêntica incapacidade de tomar iniciativas e decisões, de formar e conservar relações, de manter uma atividade adaptada às circunstâncias, numa palavra, observaríamos a inatividade social que em Madeleine se notara. Ora, exatamente o contrário averiguamos. Longe de ser inerte, de fugir para a "ilha deserta" e asilar-se no sonho, Teresa desenvolveu uma atividade fora do comum, verdadeiramente espantosa — ainda mais para uma mulher daqueles tempos. — Reformou não só as freiras como os frades carmelitas; fundou trinta conventos, vencendo as mais prementes dificuldades materiais e enfrentando as mais decididas oposições. Dirigiu com tato, diplomacia, energia, dignas de um grande estadista, negociações laboriosas e delicadas. Viajava tanto, que afinal lhe ordenaram as autoridades eclesiásticas, se recolhesse à solidão claustral, por não convir que estivesse sempre uma religiosa a errar por montes e por vales. Conquistou amizades e provocou dedicações extremadas em todas as classes sociais; exerceu profunda influência não só em meios conventuais, senão entre os mais doutos e os mais graduados de Espanha.
Janet, sentindo quão precária era sua posição, tentou uma retirada estratégica e, para cobri-la, valeu-se de dois expedientes. Afirmou em primeiro lugar que Santa Teresa é personagem muito antiga e provavelmente lendária, cujos feitos e ditos não podem controlar...
Ingenuamente perguntaremos por que Santa Teresa pertencia à história quando Janet a classificava entre os dementes, e se tornava subitamente lendária quando se lhe provava a sanidade mental? Retrucaremos outrossim, que fontes históricas abundantíssimas e controladíssimas permitem reconstituir a atividade social da santa, sem que sejamos obrigados a fazer um cego ato de fé nas declarações de Teresa.
Adita ainda Janet: "esses indivíduos místicos não passaram a vida em êxtases; terminada a crise, puderam desenvolver uma atividade normal". Esquece-se o ilustre mestre que tampouco Madeleine passara a vida inteira em êxtase; segundo as próprias declarações de Janet: "les extases de Madeleine sont assez rares et n'occupent que deux ou trois jours de tems en temps". Ora, não foi apenas por dois a três dias, "de tempos em tempos" que Madeleine se revelou socialmente incapaz, foi durante todos os sete anos passados na Salpêtrière, confirmado isto pelo próprio Janet repetidamente. Só retornou à atividade social ao cessar o delírio místico. Em Santa Teresa, muito ao contrário, o misticismo, longe de ser inativo, era fonte de ação; até mesmo as visões tinham em grande parte a finalidade de regular e dirigir-lhe a atividade exterior. Prova sobeja encontraremos no livro das "Fundações", no qual a Santa relata, com grande vivacidade e abundância de detalhes, suas atividades de reformadora. É inútil multiplicar exemplos. Tão diversas as fenomenologias do misticismo de Teresa e do delírio de Madeleine, que parece de todo impossível afirmar-lhes a identidade substancial: demasiado profunda é a oposição, demasiado evidente a irredutibilidade.

Mística: o que é?


por Paulo Faitanin – Instituto Aquinate/UFF.

1. Introdução: A via mística inicia-se no homem com a noite do espírito, onde do escuro do espírito só se contempla a luz do Espírito Santo. O ápice da mística consiste na contemplação, pelo auxílio da graça infusa. Embora o Espírito possa causar esta iluminação de ordem sobrenatural sem supor a prévia purificação do espírito, ordinariamente aquela se segue a esta, pois, como já se disse, assim como o corpo naturalmente ordena-se à alma, a ascética naturalmente orienta-se para a mística. Por isso, a graça supõe o exercício pleno da natureza humana, sobretudo da razão e das faculdades que lhe são subordinadas.
 
A mística assegura-se basicamente pela contemplação, fundamento da união mística com o Amor1. Enfim, a mística é a docilidade da alma ao Espírito Santo, por meio da qual se obtém a contemplação, que se dá mediante a infusão de graças e dons que revelam à alma os mistérios da fé, estabelecendo-lhe, por uma via unitiva, sua união com Deus, a partir da qual podem lhe advir, ainda que não necessariamente, outras graças extraordinárias, como as visões e revelações que, às vezes, acompanham a contemplação infusa.

2. Difere da ascética? Três são os graus de intensidade com que a caridade se estabelece na alma humana: principiante, proficiente e perfeita. Aqueles três graus da caridade constituem as três idades da vida interior do espírito. Eles estão correlacionados às duas vias de perfeição: a via ascética2, de purificação e aperfeiçoamento, a qual pertencem os principiantes e os proficientes, e a via mística3, de contemplação e união com a caridade divina, a qual pertencem os perfeitos. Estas duas vias são os acessos comuns à perfeição da vida espiritual.
 
A ascese é assegurada fundamentalmente pela abstinência, fundamento de muitas outras virtudes: jejum, castidade, penitência, mortificação, abstendo-se até das coisas mística lícitas para entregar-se mais livremente ao serviço de Deus 4. Enfim, a ascese é a prática de purificação da alma, mediante a renúncia dos bens exteriores. Isso não seria possível sem a disciplina do corpo, com relação aos prazeres. Esta reta ordenação da alma pelo corpo ao verdadeiro bem se dá porque a inteligência iluminada pela graça discerne a verdade e influencia a vontade fortalecendo-a quanto ao fim a ser almejado, ao mesmo tempo em que evita o mal e orienta e corrige os exageros das paixões. Como se trata de um gradativo crescimento espiritual, aqueles que possuem o grau principiante da caridade, se enquadram na via ascética, onde procuram a purificação, progridem na caridade e demais virtudes, culminando com o recebimento de outros dons.

Notas

1 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.184, a.3, ad 3.

2 A palavra ascética ocorre apenas uma vez em todo o Corpus Thomisticum [Sententia Ethic., lib. 9 l. 10 n. 15.] e significa purificação.

3 A palavra mystica ocorre muitas vezes no Corpus Thomisticum e se refere: ao revelado, ao
secreto [Sententia Ethic., lib. 3 l. 3 n. 12], ao oculto [De div. nom. proemium], ao que excede o
nosso intelecto [De div. nom., c.2, lec.4] e à contemplação [Super Sent., lib.1 d.3, q.1, a.1,
s.c.2].

4 TOMÁS DE AQUINO. STh. II-II, q.84, a.3, ad 3.