Por Lincoln Haas Hein*
Com essas considerações podemos retomar o versículo inicial do Cântico dos Cânticos e compreender a nossa corrida e a nossa ascese:
“Atraí-me, correremos ao odor de vossos perfumes”
Ah! Maravilha do amor de Deus! Em nossa corrida cristã não corremos senão porque já possuímos imperfeitamente pela esperança o prêmio que buscamos! É este o rumo certo mencionado por São Paulo que nos é comunicado pela fé nos santos dogmas e mistérios, pela esperança da salvação eterna e pela caridade que nos une a Deus por Ele mesmo e por sua Glória.
Corremos com todos os nossos esforços em santas obras interiores e exteriores que demonstram o nosso amor e exercitam o nosso amor, mas corremos atraídos pelo perfume do Amado que foi e é continuamente derramado em nossos corações para nos dar o impulso inicial e as forças necessárias em cada passo. Recebemos a graça dos dons e virtudes: a graça santificante com o cortejo das virtudes teologais e morais infusas e também os dons do Espírito Santo, através dos sacramentos. Recebemos também continuamente a cada instante graças atuais que como o perfume do Cântico dos Cânticos nos atraem e nos fazem correr, mas correr junto com o Amado que nos acompanha na corrida e que antes de nós corre em nossa direção.
Temos pois os nossos esforços junto com as graças do Amado que nos auxiliam nesses esforços e esta é nossa ascese: o exercício das virtudes na conexão da santa caridade. Essa corrida começa com uma caminhada, com um andar mais trabalhoso e por isso mais “ascético” e atraídos pelos olores do amado cada vez mais avançamos até corrermos movidos pela sua graça. E como temos que nos deixar conduzir pela graça e nos conformar com Cristo Crucificado esses esforços são caracterizados sobretudo por sacríficios, por privações, por renúncias conduzidas pelo amor e para o amor: para propiciar o aumento do amor e para exercitar o amor já recebido e conquistado, para deixarmo-nos a nós mesmos e vivermos pelo Amado.
Essa vida de esforço auxiliado pela graça e secundando a ação da graça que sempre se antecipa a nós progride e continua por toda a nossa vida espiritual, o esforço e a ascese continuam até a nossa entrada na vida eterna. Mas existe um determinado momento de nossa vida espiritual que todos esses esforços junto com a graça e movidos pela graça modificaram de tal maneira nossas disposições que atuamos mais intensamente movidos pela graça e pelo Espírito Santo e então ainda que nossos esforços continuem percebe-se muito mais a ação do Espírito que nos move.
Esse atuar mais sob a moção do Espírito Santo tem duas etapas de intensidade diversa, a primeira menos intensa e a segunda mais intensa, segundo os mais autorizados teológos (cito o Pe. Garrigou-Lagrange como exemplo). Caracterizam o que chamam de “mística”, quando a alma opera segundo a oração infusa que recebe passivamente. Alguns teólogos reservam o termo “mística” apenas para quando essa “passividade” da alma em relação aos dons do Espírito Santo que a move atinge o seu grau mais intenso na última e terceira etapa da corrida.
Nossa corrida então está agora bem caracterizada: vida ascética e mística entrelaçadas, esforço da alma colaborando e graça que atua, vida que se desenvolve em três etapas: iniciantes, avançados e perfeitos (também chamadas de 1ª, 2ª e 3ª via ou via purgativa, iluminativa e unitiva).
Mas para concluir digo que os esforços que constituem a ascese são pela Santa Tradição da Igreja e pelas Sagradas Escrituras incluídos em três categorias amplas que poderão ser aprofundadas em artigos posteriores: jejum, oração e esmola. Todas as obras de penitência (e ascese é sobretudo penitência amorosa) podem ser incluídas nestas três categorias entendidas num sentido largo. Podemos aprofundar cada uma das três de um modo que a alma se exercite nelas independentemete do estado de vida para conseguir se deixar conduzir pelo Espírito Santo. Cito então como conclusão os trechos do Tratado do Amor de Deus de São Francisco de Sales que me inspiraram e guiaram neste artigo:
“a alma prevenida pela graça, sentindo os primeiros atrativos e consentindo na doçura deles, como que tornando a si após longo desmaio, começa a suspirar estas palavras: Ai! ó meu caro esposo! meu amigo! atraí-me, rogo-vos, e tomai-me debaixo dos braços, pois de outro modo não posso ir (Cânt 1,3); mas, se me atrairdes, correremos; ajudando-me vós pelo odor dos perfumes, e correspondendo eu por meu fraco consentimento, e cheirando as vossas suavidades que me reforçam e revigoram toda até que o bálsamo do vosso nome sagrado (Cânt 1,2) isto é, a unção salutar da minha justificação, seja derramada em mim. Estás vendo, Teótimo, ela não pediria se não fosse excitada; mas, logo que o é e sente os atrativos, pede que a atraiam; sendo atraída corre; mas não correria se os perfumes que a atraem e pelos quais é atraída não lhe avivassem o coração pela força do seu odor precioso: e à medida que ela corre mais, e mais se aproxima do seu celeste esposo, sempre mais deliciosamente sente as suavidades que ele derrama, até que enfim ele próprio se infunde dentro do coração dela à maneira de bálsamo derramado”
“tendo recebido da bondade celeste a fé, a esperança e a caridade nós devemos sempre volver nossos corações e mantê-los tendidos para esse lado, para dele impetrar a continuação e o incremento das mesmas virtudes... na opinião de São Paulo, que assegura que só Deus é poderoso para fazer abundar em nós toda graça (2Cor 9,8).
É, pois, Deus quem opera esse incremento em consideração do emprego que nós fazemos da sua graça, conforme está escrito: Àquele que tem, isto é, que emprega os favores recebidos, dar-se-lhe-á mais, e ele abundará (Mt 13,12). Assim se pratica a exortação do Salvador: Ajuntai tesouros no céu (Mt 6, 20), como se ele dissesse: Juntai sempre novas boas obras às precedentes; porque elas são as moedas de que vossos tesouros devem ser compostos, o jejum, a oração, a esmola.”
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