terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O Poço que jorra a Vida eterna


"39Muitos samaritanos daquela cidade tinham acreditado Nele por causa da palavra da mulher que afirmava: “Ele me disse tudo o que eu fiz”. 40Assim, quando chegaram junto Dele, os samaritanos Lhe pediram que ficasse entre eles. E Ele ficou lá dois dias. 41Bem mais numerosos ainda foram os que creram por causa da própria palavra de Jesus; 42e eles diziam à mulher: “Não é somente por causa dos teus dizeres que nós cremos; nós mesmos o ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo”."

Comentando:

Aqui, as observações finais do Evangelista, cheias de significado:

Primeiro a Samaritana, que não consegue conter, guardar só para si o tesouro que encontrou, a alegria que experimentou: vai, exultante, partilhar com seus conterrâneos! Repito o que já afirmei anteriormente: quem encontra Jesus de verdade não consegue deixar de falar Dele: “Não podemos nós deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4,20). Evangelizar não é anunciar ideias, não é fazer promoção social, não é fazer pesquisa sobre as condições de vida de uma comunidade, não é fazer educação política, social ou ecológica...
Evangelizar é anunciar o Jesus que se descobriu e experimentou como Senhor e Salvador, é comunicar uma alegria, uma certeza, um entusiasmo... É isto que comove, que contagia, que convence e transforma a vida das pessoas e do mundo! O resto - quando não é precedido deste essencial - é moralismo chato, enfadonho e insuportável... Disso temos experimentado muito na vida da Igreja nas últimas décadas!
Por isso mesmo, ser cristão deixa de ser uma alegria para ser um peso chato e sufocante!

Segundo ponto: os que creram inicialmente na mulher não ficam numa fé superficial: pedem que Jesus fique com eles e procuram conhecê-Lo, conviver com Ele, escutá-lo!
Este processo de crescer no conhecimento amoroso de Cristo, numa intimidade saborosa e pessoal com Ele, nunca deve ter fim para o verdadeiro cristão, para o autêntico discípulo: quem conhece Jesus deseja sempre mais conhecê-Lo; quem O ama verdadeiramente desejará sempre amá-Lo mais, porque, como dizia Santa Teresa d’Ávila, “amor atrai amor”! Não basta o querigma, o primeiro anúncio; é necessária a catequese, o fazer sempre ecoar de novo, aprofundando, o primeiro anúncio recebido...
Por isso os samaritanos pedem que Jesus permaneça com eles e dizem, enfim, de modo comovente, à Samaritana: Já não cremos mais pelas tuas palavras, de modo indireto; nós mesmos vimos, ouvimos, tocamos, experimentamos que Este é o Salvador do mundo!

Nunca esqueça, viu meu Leitor querido: o cristianismo nasce e se alimenta constantemente de uma experiência viva, pessoal, sempre nova, sempre criativa e sempre apaixonante e transformadora com a bendita Pessoa de Jesus de Nazaré, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Filho eterno do Pai, Cristo de Deus, nosso Salvador amado!

- Jesus meu, Jesus nosso,
Salvador bendito!
Obrigado pela Tua Palavra,
Obrigado pela Salvação,
Obrigado pela esperança plantada em nossos corações!

Olha benigno para os catecúmenos da Igreja,
aqueles que se preparam para o Batismo no Espírito,
na próxima Páscoa!
Que bebendo da Água viva que Tu somente nos dás,
possam viver já agora na Vida eterna,
possam fazer jorrar para outros esta bendita Água de Vida
e possam um dia, no Teu Dia, viver essa Vida para sempre!

Jesus, dá-nos a nós também, já batizados,
o que para eles, os catecúmenos, estamos suplicando!
A Ti a glória, ó Bendito,
hoje, na Igreja,

e pelos séculos dos séculos. Amém.

POR: DOM HENRIQUE SOARES DA COSTA

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Os problemas de alguns "retiros" - verdades que não podem ser ignoradas



É sempre assim: em muitos dos eventos, encontros, retiros que há por aí, sobretudo os que acontecem com jovens, a maior esperança é que os participantes consigam fazer experiências afetivas mais ou menos intensas. É o que a Psicologia chama de cartarse e que consiste numa liberação emocional que, sem dúvida alguma, pode dispor a pessoa a uma generosidade maior a ponto de investir a si mesma naquele caminho que lhe foi apresentado. Tudo bem... A catarse, em geral, faz bem. Mas... até aí, não há nada de especificamente espiritual.

O grande problema é que esta experiência emocional não raro se torna a grande finalidade, ao ponto de muitos chegarem a identificá-las com as ações de Deus. Disto resultam três coisas muito problemáticas: 1) a expectativa pessoal da ação divina fica restrita a um âmbito muito estreito e, em última instância, não necessariamente espiritual. As demais formas de intimidade com Deus (formas mais profundas e substanciais) são ignoradas e desprezadas. 2) Se se entende que Deus age pela liberação emocional que se pode ter, nada impedirá, a princípio, que o próprio sujeito "force" tais experiências, buscando provocá-las ou estendê-las, o que tanto prejudica a sinceridade da pessoa quanto compromete a sua constância, pois é óbvio que tais sentimentalismos não podem e não devem ser um contínuo na vida. A pessoa perde a sobriedade e fica cativa de quaisquer enganações, pois o critério que lhe ensinaram pode ser reproduzido, sem dificuldade, em qualquer lugar. Isto, inclusive, vai descambar na sensualidade. 3) O sujeito, forçando em si mesmo tais experiências e identificando a ação de Deus com elas, torna-se um egoísta, ocupado primeira e unicamente em satisfazer os próprios desejos "espirituais", sem atentar em nada mais alto. Por "mais  alto", essa pessoa geralmente entende "mais intenso" do ponto de vista da sensação.

Tudo isto, como já disse, é muito problemático e esconde, ainda, outras sutilezas, quase todas desinteressantes. Quem não perceberá que, neste contexto, pouca importância se dará ao campo preciso da Teologia? Por isto que é muito comum - comum demais - surgirem erros crassos nos discursos e pregações destes eventos. Depois, para muitos dos participantes, o retiro terá respondido uma questão fundamental da vida humana: "como eu posso chegar a Deus e viver com Ele?" Notem o seguinte: a pergunta é uma tensão que exige uma resposta. Enquanto há tensão, há busca. Porém, o retiro terá oferecido a muitos a resolução deste problema, o que lhes terá amortecido a dúvida. A questão é: terá sido esta resposta algo verdadeiro? Se não for, o problema agrava-se porque então não há mais busca e, portanto, o conhecimento desta verdade não mais buscada foi obstruído por um erro que se tomou por verdade.

Os que convivem neste meio - e eu já convivi por bastante tempo - conhecerão muitas pessoas que, não podendo reproduzir as tais experiências emocionais na vida cotidiana, começarão a transitar de encontro a encontro, de retiro a retiro, isentando-se de ter uma vida cristã no tempo ordinário. Será isto a vida santa que, muito inocentemente mas, também, irresponsavelmente, dizem aos berros que querem ter? Terá mesmo um cristão uma necessidade rigorosa de ficar reproduzindo sensações estomacais e arrepios para poder levar uma vida íntegra? Não, eu respondo. É claro que não. Um dos grandes problemas destes retiros é esse: lá, nos dois ou três dias, teremos muita gente convicta de que agora a coisa vai, agora vão tomar jeito. Porém, quando voltam à vida comum, em pouco tempo já estarão sentindo, de novo, o já tão conhecido descaso, a preguiça, os apelos da sensualidade, as correntes do egoísmo. E por quê? Porque o tal retiro, embora bem intencionado - não o duvido - pareceu ser, no fundo, mera distração, mera descontração, mera dinâmica de grupo, mero discurso levemente filosófico e moralista, mero cultivo de estados hipnóticos coletivos a partir da auto-sugestão dos participantes e, por fim, parece ter havido um certo tipo de superstição das emoções: "se eu senti foi bom; se eu senti bastante, foi muito bom; se eu não senti, não foi bom." Eis Deus reduzido a arrepios e espasmos. Eis a conversão apresentada como modo adocicado de viver. É óbvio, meus caros, que um tal "projeto de santidade" não vai longe. E se eu o denuncio aqui, não é simplesmente para acusá-los, mas para que os que trabalham com evangelização de jovens - e o GRAA também trabalha - atentem para estes problemas e comecem a dar importância àquilo que é "verdadeiramente verdadeiro". Vamos, então, à exposição de certas verdades que não podem ser ignoradas de modo nenhum na evangelização e que, não obstante a sua essencialidade, têm sido solenemente deixadas de lado para dar lugar aos gritos e trejeitos de pregadores de inspiração pentecostal protestante e que terminam por fazer confusão de tudo, dizer meio mundo de abobrinhas e, no final, ainda saem convictos de que são "pregadores da palavra". Não, não são... Sinto dizê-lo. Muitos deles são, no máximo, auto-enganadores; sujeitos inocentes que, à força de berros, passam a imagem de serem persuasivos. Neste tipo de contexto, uma frase profunda, cheia de sentido espiritual e dita com sobriedade é absolutamente ignorada, enquanto outra, non-sense, clichê, medíocre, mas dita aos berros e com bastante apelo emocional é capaz de arrancar lágrimas de alguém que, no fundo, não está preocupado em entender nada, mas quer apenas impressionar-se a cada momento. Não deixará passar, portanto, nenhuma oportunidade, ainda que não perceba o quão imbecil é recorrer a este tipo de subtefúrgio. 

Vamos lá, então.

A primeira coisa que estas pessoas têm de se preocupar é em dar uma visão correta de Deus e, naturalmente, da alma humana. Só que, dar esta visão correta supõe necessariamente conhecer esta visão correta. Em muitos casos, ela não será conhecida sequer pelos organizadores do encontro. Se isto acontece, isto é, se os pregadores e demais pessoas que estão a trabalhar num determinado evento pretensamente católico desconhecem quem seja Deus e o que seja o homem, a única coisa que pode se dar é o que foi dito por Nosso Senhor: "cegos que guiam cegos cairão todos no mesmo buraco". Um pretenso guia deve, naturalmente, conhecer o caminho e o  termo do caminho. Ora, este caminho não é outro senão o ensinado pela doutrina católica. Por que motivo, então, se faz tão facilmente, não somente abstração, mas até oposição a esta doutrina? Alguns dirão que o discurso teológico não é capaz de "tocar" o coração de iniciantes. Este tipo de alegação baseia-se num preconceito de fundo naturalista e esconde uma espécie de soberba e falta de fé. S. Paulo escreve, na primeira carta aos Coríntios, que não usava acréscimos nem suavizações nas pregações, para não desvirtuar a cruz de Cristo. (1,17) Isto demonstra que Paulo, como verdadeiro evangelizador que era, acreditava que a palavra de Deus, por si mesma, é dotada de força e de beleza. Ela atrai por natureza e, se mostrada em sua pureza, é apta para satisfazer os mais profundos anseios da alma humana. Não há que distorcer nada, portanto! Quando, ao contrário, queremos melhorar a coisa, torná-la mais deglutível, deixá-la mais emocional ou retirar as arestas mais incômodas do Evangelho, o que estamos fazendo é, simplesmente, revelando a nossa falta de Fé em Deus e supondo estupidamente que nós podemos ser os autores de um discurso mais maduro, mais eficaz. A auto-suficiência humana é, sem dúvida, sem fim.

Com isto, não estou a dizer que os "termos" utilizados precisam ser os mesmos termos técnicos da Teologia mais rebuscada. Não é preciso ler a Suma Teológica nas palestras a iniciantes. Mas, ainda que com uma linguagem simplificada e aproximada do cotidiano, não há que se desvirtuar o conteúdo preciso da pregação, sob pena de terminar por mostrar um "Deus" que é muito mais criação do homem do que seu Criador. E um "deus" que é segundo a nossa imagem e semelhança é, por força, uma ilusão, e uma ilusão não converte ninguém. É a verdade que liberta! E entendam aqui: a questão não está em manter simplesmente os nomes exatos das Pessoas da Trindade. Isto sempre se faz; o negócio é mostrar Deus como Ele é, segundo ensina a Doutrina Católica, a Verdade revelada pelo próprio Deus a respeito de Si mesmo.

Mas alguns costumam fazer uma distinção que pode ser um tanto ambígua: existe o discurso catequético, propriamente dito, e existe o que chamam de "discurso querigmático". A este último, atribuem um caráter mais espiritual e destinado à persuasão primeira daqueles que serão, pretende-se, os novos adeptos daquela proposta de vida. De fato, é possível aceitar esta distinção. Ela existe nos santos. Há um caso bastante ilustrativo disto: havia dois santos que se conheciam e dos quais agora não lembro o nome; um deles era bastante combativo no terreno da filosofia e da teologia mais técnica. Ele costumava vencer os hereges. No entanto, admitia: eu posso desmascarar as mentiras sutis no discurso herético. Mas, se a pessoa quiser converter-se, dirija-se ao outro. Isto pode parecer estranho para alguns, sobretudo para os que consideram que o único impedimento para a conversão de alguém está na compreensão errada de Deus. Porém, também existe, embora em menor número, aqueles outros casos de pessoas que compreendem a doutrina e os pontos mais importantes da Teologia e que, porém, não conseguem simplesmente aderir. Lembremos, caríssimos, que a Fé é um dom.

Pois bem. Uma certa distinção nos modos de expor o discurso cristão até existe, mas não pensemos que ambas sejam totalmente independentes, pois aí teríamos dois discursos essencialmente diferentes sobre um mesmo objeto, o que daria obviamente em contradição. O que acontece é que o discurso mais espiritual, destinado a acender o amor da alma para Deus, supõe necessariamente a retidão do discurso mais racional. Não é legítimo, portanto, sob pretexto de trabalho querigmático, ferir pontos da doutrina, pois a perfeição desta deve existir antes de um apelo afetivo. Lembremos que nas relações entre as potências da alma, o intelecto é anterior à vontade e esta age somente depois daquele. O intelecto encontra o objeto digno de amor e a vontade, só então, lhe investe o afeto. Por isto que a retidão da doutrina deve ser o suposto no discurso querigmático, pelo menos nos pontos mais essenciais.

Se este cuidado é tomado, não somente Deus será mostrado de modo coerente como, ainda, tal demonstração, sendo verdadeira, atingirá de modo muito mais profundo e direto a alma humana que é, em sua próprio natureza, essencialmente disposta para Deus.

Adentremos, agora, neste segundo ponto, e que eu penso ser quase tão sério quanto o primeiro equívoco. Se no campo da doutrina o negócio costuma ser problemático, quando consideramos o conhecimento da alma humana que essas pessoas geralmente têm, a coisa chega ao grau do risível. Não deixa de ser ridículo que estes pretensos guias pretendam conduzir outras almas sem sequer conhecer o que seja a alma humana. Se o leitor quiser ter uma pequena dimensão desta absurdidade, basta ler alguns tratados espirituais de alguns santos. Verão que o conhecimento do que seja a pessoa humana é essencial antes de alguém se arvorar o direito de guiar quem quer que seja. Se estes santos forem lidos, o leitor encontrará sutilezas da psicologia humana que os modernos sequer suspeitam. Em grande parte, o que acontece nos dias de hoje pode muito bem ser descrito por S. Paulo, quando escreve: "apartarão os ouvidos da verdade, e se darão ao prurido de novidades." Esta sede de novidade no homem moderno é tanta que ele parece pretender estabelecer uma nova ordem de coisas no mundo, inclusive uma nova estrutura da alma à força de um discurso medíocre repetido ao infinito. O que há é um idealismo exacerbado, mesmo dentro das igrejas. O que é dito não mais precisa adequar-se ao que existe anteriormente; agora, parece-se pretender que o que é dito é que molda o que existe. Nada mais falso, pois isto é pura e simplesmente uma revolução contra a verdade; a verdade que, segundo Jesus, é a causa da liberdade.

O maior ponto fraco que vejo nestes retiros e eventos é que as pessoas vendem a idéia de que, por causa de alguma experiência subjetiva, os participantes daquele final de semana amanhecerão, no outro dia, com uma vontade totalmente sadia e nunca mais inclinada ao erro. Eles até dizem que eles voltarão a um mundo que continua devasso e tal, mas parecem supor que aquelas pessoas terão forças de simplesmente se oporem e se tornarem heróis da santidade. Por que não dizem que, precisamente nas tentações, é a vontade humana que quererá cair? Os inocentes ficam a pensar que, na próxima tentação com que se depararem, eles vão lutar e vencer, mas ao fazê-lo, eles estão supondo uma vontade sadia, que não queira o que aquela má inclinação lhes sugere. Mas a inclinação ruim fará que justamente a vontade se volte em direção do erro! Isto porque a vontade humana é enferma! Para que readquira saúde perfeita, torna-se necessário entrar uma guerra que, muito além de um final de semana, deve ser estendida por toda a vida, sem tréguas! Além disto, este tipo de retiro não prepara a vontade sequer para uma semana, pois o que se vive lá, ao lado de pequenas privações, é um apelo às satisfações da sensibilidade, as mesmas que satisfazemos quando pecamos! Se as pessoas buscam grandes emoções fora da Igreja, nas drogas, no sexo desregrado, estes outros procuram convertê-los a partir de que? De grandes emoções! Objetarão que são emoções diferentes! De fato, muito diferentes, mas ambas estão a satisfazer a sensibilidade que, mais tarde menos tarde, quererá outras doses. Não podendo adquiri-las em contínuo no campo da espiritualidade, as forjará em outros campos, e não raro nos que pretendia ter deixado anteriormente. É que este tipo de coisa somente robustece o próprio egoísmo. A questão é que, por ser um pouco sutil - não muito -, estas pessoas dirão que isto que eu afirmo é falso. E de novo queremos apontar para a falta de tato destes pregadores e destes organizadores de eventos - pelo menos da maioria deles -, que só vêem o que lhes é absolutamente escancarado. Como querem conduzir almas se são míopes?

No início da vida espiritual autêntica, o sujeito deve animar-se a uma rigorosa ascese, que é um exercício da alma, também a partir do corpo, visando cortar os laços pecaminosos que foram cultivados ao longo de tanto tempo. E isto, antes de causar sensaçõezinhas agradáveis, é um negócio difícil, é árido, pois fere o egoísmo humano, desfaz apegos, retira falsas seguranças e falsas felicidades e provoca vazio. É por isto que Sto Antão dizia que o caminho da santidade não se abre senão a partir de um começo difícil. Por que raios este povo de hoje pensa que as coisas mudaram? Por que motivos no universo imaginam que Deus mudou ou que a alma humana tenha mudado? Por que raios pensam que, num mundo ainda mais depravado, as vias da santidade se tornaram milagrosamente mais fáceis? Se o caminho de Cristo fosse simplesmente o de experiências catárticas e de uma melosidade constante no trato com as coisas, teria ele chamado este percurso de "via estreita" e dito que são poucas as pessoas que a encontram? A partir destas constatações, entendemos que é no mínimo bastante equivocada a ideologia que subjaz a muitas destas propostas modernas de evangelização - muito bem intencionadas, não duvido, mas ingênuas.

Para educar a vontade, para que ela abandone seus apegos e volte-se a Deus para amá-Lo sobre todas as coisas e, n'Ele, amar todas as criaturas, é preciso um longo processo de mortificação e de combate da pessoa contra si mesma. Fazer pessoas acreditarem que a partir do outro dia tudo se resolverá magicamente é fadá-las à frustração. O máximo que conseguirão é fazê-las mais dóceis a estes encontros ou à idéia de Deus, o que permitirá que rezem um pouco e que abandonem hábitos muito graves que possam ter cultivado. Porém, os pequenos filhos da soberba distribuídos nas inclinações da alma, nos seus interesses, intenções, nos seus apegos; tudo isto se verá meio que imune a esta pretensa "santidade", pois nem o nível de profundidade nem o de sinceridade do sujeito alcança estas sutilezas. Quando digo "nível de sinceridade" não estou a afirmar que este povo é cafajeste ou totalmente dissimulado. A questão é que, para certos níveis de sinceridade, requer-se um correspondente nível de conhecimento de si mesmo. E isto falta a muita gente; daí a falta de profundidade, a inconstância e a mudança de resoluções tão comum quanto a mudança das fases da lua. As pessoas mais inconstantes são aquelas que estão como que no nível das sensações. Naturalmente, as sensações sendo muito mutáveis, estas pessoas também o serão, pois este será o critério para as suas decisões. Para o homem que se diz espiritual, porém, isto não é admissível. Requer-se profundidade. Se assim é, o que é que se deve esperar de pessoas que, num final de semana, aprenderam a identificar a ação de Deus justamente com as próprias sensações? Se nem a alma humana deve sofrer este grosseiro reducionismo, o que dizer de Deus?

Para que alguém se insira na vida espiritual de fato é preciso adotar um modo sistemático de mortificação. Deve, além disto, rezar bastante, o que é recomendado também nestes retiros. Mas, acima de tudo, deve aprender a cultivar a Graça na alma, e esta se perde com qualquer pecado mortal. Sem a Graça, os esforços que fazemos para a santidade se tornam incapazes de alcançar o seu termo. Negligenciar a Graça e, ainda assim, considerar a possibilidade da santidade é somente mais uma das mentiras da soberba que, de modo disfarçado, faz a alma pensar que, no fundo, tudo depende só dela e de sua maestria. Que modo há mais eficaz de enganar alguém? E esta é a grande razão pela qual tantas pessoas superficialmente bem intencionadas não conseguem avanços significativos e terminam desistindo, convencendo-se de que, no fundo, aquilo é impossível. Este tipo de desânimo é particularmente nocivo porque, além de arrefecer as boas intenções na alma, ainda lhe protegem contra futuras investidas do discurso religioso. Diante de uma pregação querigmática, o sujeito que já passou por isto tenderá a recusar aquela proposta, pois suporá que já conhece todo aquele processo e que isso, no fim, não funciona ou até nem existe. Resultado: o que, no início, começou como promessa ingênua de santidade termina, no fim, por ser garantia de ateísmo prático, proteção contra "ingenuidades espirituais". 

E o que me dirão? Que isto não existe? Que isto não acontece? 

E o que concluirão? Que este longo processo é tão somente casual? Não será, antes, fruto de uma orquestração? Não digo dos elaboradores do encontro ou do que quer que seja, mas de algo mais obscuro e que como que se mantém por trás das cortinas... Eu não descarto a possibilidade, sinceramente. Antes, a considero bastante provável.

Enfim, meus caros. Os evangelizadores não podem esquivar-se destas questões. São importantíssimas. Na verdade, são essenciais! Isso se queremos que a nossa intervenção não acabe por complicar ainda mais as coisas. Jesus já tinha dito: "sem mim nada podeis fazer." Tomemos cuidado com estas coisas e não queiramos inventar caminhos ou verdades alternativos. A Verdade é uma só e ela é, por sua própria natureza, bela, forte, atraente e capaz de enamorar qualquer alma humana que com ela tenha contato. Como S. João Batista, o nosso trabalho deve ser tão somente facilitar, aplainar o caminho para este encontro entre as almas e o sumamente amável Jesus.

Ad Iesum Per Mariam

Fábio (anjosdeadoracao.blogspot)

Dois modos equivocados de Franciscanismo




Ontem foi dia do seráfico pai do franciscanismo, um homem que, não obstante o seu profundo amor à Dama Pobreza - e justamente por causa disso - , enriqueceu o nosso mundo e a história do cristianismo. A seu respeito, muito acertadamente, disse o beato João Paulo II: "O mundo tem saudades de ti..."

Francisco era um mistério; era um sujeito que tornava o sobrenatural quase visível e, de fato, já o trazia impresso na própria carne nos seus últimos dias de vida. Muito embora seja um dos santos mais conhecidos da Igreja, Francisco é, na verdade, muito pouco conhecido. Ele mesmo afirmava que é infeliz o homem quando não tem segredos com o seu Senhor. Muito inclinado ao recolhimento e ao silêncio, alguns segredos de Francisco só foram descobertos devido à curiosidade de alguns irmãos que o iam espionar em suas orações. É por eles que, hoje, conhecemos alguns dos seus êxtases e dos seus colóquios com personagens do outro mundo.

Seja como for, Francisco foi um grande santo porque quis unicamente, em tudo, conformar-se, isto é, tomar a mesma forma de Nosso Senhor Jesus Cristo. Para tal, entregou toda a sua vida e combateu como verdadeiro cavaleiro - Francisco amava esse estilo cavaleiresco - contra o seu amor próprio e todo tipo de vaidade. Absolutamente vitorioso sobre si mesmo, desprezando-se com rigor, adquiriu uma tal violência de amor por Deus que o simples fato de pôr os olhos num crucifixo lhe fazia derramar copiosas lágrimas. Tinha os olhos fundos e um corpo fragilizado pelas longas vigílias e pelas constantes penitências que ele mesmo se impunha.

Pois bem! O Francisco que hoje, no mais das vezes, é divulgado por aí, inclusive pelos frades da sua Ordem, é qualquer outra coisa: o santo da ecologia, o santo do ecumenismo (por causa da sua conversa com o sultão...), o santo da paz universal e sincrética, o santo do bom mocismo, etc. E isso quando Francisco não é utilizado como instrumento de ideologia de esquerda. E é sobre estes dois erros que quero tratar bem sucintamente. Há muita gente por aí que ama Francisco - que até assistiu o filme hippie que fizeram dele, o "Irmão Sol Irmã Lua" que, porém, é mesmo um clássico, rs - e que simplesmente não vai às fontes e fica a admirar um personagem inventado, um homem bobinho que era só sorrisos e gostava de deitar na relva e defender os animaizinhos. Ou isso, ou a redução de toda a espiritualidade franciscana - que é altíssima - ao trabalho social com os marginalizados.

Falemos de um e de outro.

Primeiramente, S. Francisco só muito secundariamente poderia ser tido como um representante do Green Peace. O seu amor pela natureza - que realmente existiu - não era algo que 'parava' nas plantinhas e nos animaizinhos. Na verdade, o que fazia com que Francisco ficasse comovido era saber que toda e qualquer criatura fala do seu Criador. Quando o Poverello contemplava as flores ou a perfeição das pedras, tudo isto lhe servia de meditação sobre Deus. Era do seu intenso amor a Deus que brotava o seu amor por todas as coisas. Vemos isto de modo muito claro no seu "Cântico das Criaturas" que, na verdade, não é um louvor das criaturas, mas de Deus pelas criaturas.

Portanto, fazer o amor de Francisco ter como fim último a plantinha lá ou o animalzinho cá é cair num reducionismo absurdo que torna a figura deste santo somente um caricato bobo daquilo que ele foi de
verdade. O que abundava em Francisco era o dom da Sabedoria pelo qual o cristão nota a relação entre tudo o que existe e Deus. O que fazia Francisco admirar a criação era a sua abertura à transcendência, era o seu olhar voltado para o alto. Uma vez que conhecia e amava a Deus, Francisco passava a amar tudo aquilo que era obra de Suas mãos. O contrário, porém, não é o amor franciscano. Fechar-se numa perspectiva imanente significa, antes, fechar-se para o profundo conhecimento das criaturas e, logo, para o verdadeiro amor delas em Deus. A idéia de um amor alternativo a Deus é equivocada. E, no entanto, abundam as manifestações deste tipo de "franciscanismo".

O mesmo pode ser dito com relação à ênfase franciscana no aspecto social. Francisco sabia que todos os homens somos filhos de Deus porque criados por Ele e que, em especial, os mais sofridos - na sua época, os leprosos e os mendigos - representavam como uma segunda encarnação de Cristo. Jesus havia dito: "O que fizerdes a um destes pequeninos, é a mim que o fazeis". Francisco, então, sabendo do mistério que envolve o ser humano, e compreendendo que é Deus mesmo Quem se esconde nestes desfavorecidos, os servia com amor e resignação. Não é que Francisco desconsiderasse a individualidade de cada homem. Ao contrário: era por amar tanto a Deus e ser íntimo do mistério da Sua cruz, que Francisco, conhecendo agora mais perfeitamente a dignidade singular de cada sujeito e vislumbrando neles a figura sofrida de Jesus, os acolhia e os abraçava. Novamente, temos um trabalho social que aure sua força e sua razão de ser do alto e, portanto, só pode ser compreendido numa perspectiva transcendente.

Porém, tornou-se comum um tipo de "franciscanismo" que, de novo, foca o social pelo social, num claro testemunho de naturalismo que, em última instância, significará uma porta aberta ao ateísmo prático, a uma desvirtuação da caridade, fazendo desta mera filantropia. Quando, de volta ao fechamento imanentista, nós nos prendemos estritamente à imediaticidade do que vemos, resulta disto que não compreenderemos a profundidade dos indivíduos que temos diante de nós, reduzindo o nosso serviço apenas ao aspecto físico e/ou, se muito, ao subjetivo. Mas, de novo, fizemos um mutilação no sujeito que pretendíamos ajudar, ignorando um aspecto importantíssimo e crucial para que pudéssemos promovê-lo na totalidade. Sem aproximá-lo de Deus, o que fizermos estará circunscrito, forçosamente, ao âmbito do efêmero. Teremos rebaixado toda a nossa intervenção a uma busca de conforto do outro. Não estou a dizer que isto não seja importante, mas, de fato, não basta. Não era essa a intenção primeira de Francisco. Sabia ele que nós ajudamos alguém em profundidade quando pomos diante dos seus olhos, mesmo a partir de atos comuns, a perspectiva da eternidade. É só quando permitimos ao sujeito expor-se à luz divina que ele passa a compreender quem, de fato, é e tende, a partir disso, a ressignificar o seu presente à luz do transcendente. É quando somos motivados pela altíssima dignidade de uma alma imortal que podemos dispender os maiores esforços na luta pela sua defesa também no aspecto físico. O que importa é não se fechar.

Várias correntes franciscanas, porém, aderiram ao método marxista de trabalho social. Não se pode dizer que a sua intenção seja má, visto que as formações contemporâneas de frades e padres são, na imensa maioria das vezes, muito defasadas e claramente inclinadas a um viés ideológico. Mas, optar por este tipo de prática é renegar o seguimento do exemplo puro de Francisco. É meter a foice comunista no real e ficar só com o que é material e contingente. E, sinceramente, inspirar-se numa ideologia que é problemática, seja na leitura do processo histórico, seja na metodologia de ação, seja ainda na finalidade a que se ordena, é, obviamente, renunciar a qualquer possibilidade de uma ajuda mais profunda e mais real. O que vicia estas comunidades de esquerda, mesmo quando se declaram católicas, é que elas tendem a entender as questões metafísicas e espirituais como se fossem uma realidade de segunda ordem, algo menos real do que o real aparente, dando, daí, absoluta primazia a este último. Mas isto significa uma inversão radical da ordem das coisas e este tipo de avesso não pode produzir nenhum fruto duradouro e benéfico, pois tem fundamento num erro e, portanto, se opõe à verdade, sendo desta uma negação prática.

Enfim, quando falarmos de franciscanismo, tenhamos estas coisas em vista. Não sejamos precipitados na leitura da figura de Francisco. Ele é um sujeito que é difícil de esgotar e, mesmo, de entender. Mas, se quisermos nos aproximar ao menos um pouco desta santa figura, não o deveremos fazer senão entendendo o seu profundíssimo amor a Cristo Crucificado, fonte de toda a sua espiritualidade, e o seu esponsal com a Dama Pobreza, o tesouro escondido de Francisco, como ele mesmo disse:

"Vou me casar com uma noiva nobre e bonita como vocês nunca viram, que ganha das outras em beleza e supera a todas em sabedoria"

Franciscanismo com abstração de Cristo, ainda que sutil, seja de cunho ecológico ou de viés social, é somente ludibriação.

Que Francisco nos ensine, a nós que somos seus devotos, a compreender minimamente o mistério da sua vida e interceda para que Nosso Senhor nos dê forças de imitá-lo naquilo que a nós compete.

Fábio  (anjosdeadoracao.blogspot)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O celibato em questão





Côn. Henrique Soares da Costa
O Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais – CERIS, divulgou recentemente uma pesquisa, segundo a qual 41% dos padres entrevistados teriam tido “envolvimento afetivo” com mulheres após a ordenação sacerdotal. Logo cuidou-se, na mídia, de interpretar “envolvimento afetivo” como sendo pura esimplesmente relação sexual. Mais uma pancada na Igreja! Dias depois, já havia canais de televisão fazendo pesquisa de rua para saber se a população concorda ou não com o celibato dos padres. Estamos mesmo nos tempos da cretinice...
Antes de tudo, é necessário esclarecer, como fez muito bem a Conferência dos Bispos do Brasil, que “envolvimento afetivo” é uma expressão que envolve um leque muito amplo de significados, não incluindo necessariamente relação sexual nem infidelidade ao celibato. Depois, não significa que, se algum padre foi infiel à sua promessa de celibato, tenha feito isso de modo contínuo e repetido... Portanto, neste particular, a pesquisa não diz muita coisa, como alguns quiseram insinuar. Mas, suponhamos – e é só uma suposição - que 41% dos nossos padres tivessem mantido relação sexual após a ordenação, que conseqüências isso teria para a disciplina do celibato na Igreja latina? Vejamos.
Primeiro, é preciso saber que o celibato não é uma disciplina obrigatória para toda a Igreja católica, mas somente para os padres de rito latino. Os padres católicos romanos de outros ritos (maronita, melquita, ucraniano, copta, armeno, etc) podem casar antes da ordenação, como os nossos diáconos o fazem. Pouca gente sabe disso...
Um segundo ponto: é necessário estar atento para o fato que o celibato sacerdotal somente pode ser compreendido à luz da fé. Um mundo tão hedonista como o nosso, tão pan-sexualizado, jamais compreenderá o celibato, como não compreenderá a indissolubilidade do matrimônio. De resto, não compreende o Evangelho de um modo geral. O próprio Jesus, ao falar do celibato – e ao aconselhá-lo – preveniu: “Quem tiver capacidade de compreender, compreenda!” (Mt 19,12). O mundo não tem nem pode ter tal capacidade, pois o estado celibatário é algo que somente tem sentido à luz da fé e dos valores do Reino de Deus. O mundo pensa com os critérios do mundo, o cristão pensa com os critérios do Evangelho; e aqui não há acordo!
Mas, podem perguntar alguns: tem sentido manter a disciplina do celibato hoje, quando tantos padres não lhe são fiéis? Poderíamos também perguntar: tem sentido falar-e em fidelidade conjugal, se tantos esposos são infiéis? Tem sentido falar-se em honestidade na política se tantos políticos são desonestos? Como se pode ver, a pergunta é superficial e não tem muita importância para a Igreja...
O celibato sacerdotal não é um dogma de fé católica; é uma disciplina eclesiástica. Um dia, poderia ser abolida a sua obrigatoriedade. A Igreja o mantém porque vê nele um valor. Cristo o viveu e o recomendou (cf. Mt 19,10-12); também Sã Paulo (cf. 1Cor 1-40). Os primeiros bispos, padre e diáconos, mesmo podendo casar-se, se ficassem viúvos, não poderiam casar novamente (cf. 1Tm 3,2; Tt 1,6). A Igreja, povo de Deus, pouco a pouco, foi vendo sempre mais, no permanecer solteiro por amor do Reino dos Céus, um valor espiritual. Primeiro, para imitar o Cristo que escolheu viver neste estado para dedicar-se totalmente ao serviço do Reino; depois, como um sinal de que aqui estamos de passagem e não temos morada permanente; finalmente, como um modo de estar mais disponível para o trabalho apostólico. Foi na Idade Média, no século XIII, no IV Concílio de Latrão, que o celibato foi, finalmente, colocado como condição para todos aqueles que recebem o sacerdócio ministerial.
Certamente, hoje, com a mentalidade permissiva da sociedade atual, a vivência do estado celibatário é mais difícil, como também é difícil a castidade (viver retamente a sexualidade, tendo relações somente no casamento) exigida pelo Cristo para todos os seus discípulos. Mas, qual a solução? Eliminar o preceito da castidade para o cristão, traindo o Cristo? Eliminar pura e simplesmente a disciplina do celibato, capitulando facilmente? A Igreja não fará isso! Quem pensa o contrário não conhece a Igreja católica! O desafio, o problema, a questão é formar bem nossos seminaristas: formá-los para uma afetividade sadia e equilibrada, formá-los para uma vida celibatária realizada e feliz. E uma tal vivência é plenamente possível quando se tem como ideal e sonho o Reino de Deus. O grande desafio, na questão do celibato, é a formação nos seminários; o restante é de menor importância. É falsa a idéia que, acabando com o celibato, os padres seriam mais castos. Há tantos e tantos casados que são infiéis... É falsa também a idéia que haveria um aumento no número de vocações sacerdotais. O Brasil nunca teve tantos seminaristas como atualmente. O problema – repito - é a formação desses jovens!
Problemas, nesta área da afetividade e da sexualidade, sempre haverá no clero, nos quartéis, nos tribunais, entre ministros não-católicos, entre casados... Infelizmente, a fraqueza humana é uma realidade com a qual temos que fazer as contas todos os dias. A questão é que um escandalozinho envolvendo um padre, celibatário, ministro do Evangelho, é um prato cheio para os que gostam de denegrir a Igreja e, assim fazendo, apagar algo mais do pouco de consciência cristã que nosso mundo ainda possui.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Dúvida e Fé – Situação do homem frente ao problema "Deus"


Quem tentar falar hoje sobre o problema da fé cristã diante de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica por vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e surpreendente de semelhante iniciativa. Provavelmente depressa descobrirá que a sua situação encontra uma descrição exata no conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia em chamas, conto que Harvey Cox retomou há pouco em seu livro A Cidade do Homem . A estória conta como um circo ambulante na Dinamarca pegou fogo. O diretor manda à aldeia vizinha o palhaço, já fantasiado para a representação, em busca de auxílio, tanto mais que havia perigo de alastrarem-se as chamas através dos campos secos, alcançando a própria aldeia. O ator corre à aldeia e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar as chamas do circo incendiado. Mas os habitantes tomam os gritos do palhaço por um formidável truque de publicidade para aliciá-los ao espetáculo; aplaudem-no e riem a bandeiras despregadas. O palhaço sente mais vontade de chorar do que de rir. Debalde tenta conjurar os homem e esclarecer-lhes de que não se trata de propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa muito séria, porquanto o circo realmente está a arder. Seu esforço apenas aumenta a hilaridade até que, por fim, o fogo alcança a aldeia, tornando excessivamente tardia qualquer tentativa de auxílio; circo e aldeia tornam-se presa das chamas.
Cox conta esta estória como símile da situação do teólogo hodierno e vê a figura do teólogo numa fantasia incapaz de transmitir aos homens a sua mensagem. Em sua roupagem de palhaço medieval ou de outro remoto passado qualquer, o teólogo não é tomado a sério. Pode dizer o que quiser, continua como que etiquetado e fichado pelo papel que representa. Qualquer que seja o seu comportamento e seu esforço de falar seriamente, sempre se sabe de antemão que ele é um ator. Já se adivinha qual o assunto de sua mensagem e se sabe que apenas está dando uma representação com pouco ou nenhum nexo com a realidade. Por isso pode ser ouvido sossegadamente, sem inquietar a ninguém com as coisas que afirma. Sem dúvida existe algo de angustiante neste quadro, algo da angustiada realidade em que a teologia e formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada impossibilidade de quebrar chavões do pensamento e da expressão rotineiros e de tornar reconhecível o problema da teologia como assunto sério da vida humana.
Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva mesmo ser mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro excitante – por muito verdadeiro e digno de consideração que seja – ainda simplifica em excesso as coisas. Pois, dentro dele, tem-se a impressão de que o palhaço, ou seja o teólogo, é quem sabe perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os aldeões, aos quais acorre, isto é, os homens sem fé, seriam, pelo contrário, completamente ignorantes, os que devem ser instruídos sobre o que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem, retirar a maquilagem – e tudo estaria em ordem. Mas, por acaso a questão é tão simples assim? Bastar-nos-ia um simples apelo à modernização, uma mera retirada da maquilagem e uma reformulação em termos de linguagem do mundo ou de um cristianismo a-religioso para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram animados e ajudem a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para todos? Vejo-me compelido a afirmar que a teologia de fato desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de um antigo sarcófago, que penetrou no mundo hodierno, revestido de trajes e pensamentos da antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer bastante autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de uma forma, de uma crise do revestimento em que a teologia se apresenta. Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua própria vontade de crer. Por isso quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas.
Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente. Esclareçamo-lo com alguns exemplos. Teresa de Lisieux, a amável santinha, aparentemente tão isenta de complexidades e de problemas, cresceu em uma vida de completa segurança religiosa. Sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeitamente e minuciosamente marcada pela fé na Igreja, que o mundo invisível se tornara parcela do seu cotidiano; ou antes, o próprio cotidiano seu, parecendo quase tangível e impossível de ser eliminado de sua vida. Para Teresinha, "religião" era, de fato, um dado prévio e natural de sua existência diária; ela manipulava a religião como nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida. Mas justamente ela, aparentemente tão resguardada numa segurança sem risco, deixou-nos comovedoras manifestações do que foram as últimas semanas do seu Calvário, manifestações que, mais tarde, suas irmãs, assustadas, atenuariam em seu legado literário e que só agora vieram à tona nas novas edições autênticas e literais de sua obra. Assim, por exemplo, quando ela afirma: "Acossam-me as reflexões dos piores materialistas." Sente a inteligência torturada por todos os argumentos possíveis contra a fé; o sentimento da fé parece desaparecido; ela sente-se transportada para dentro da "pele dos pecadores" . Isto é, em um mundo que parece completamente sólido e sem brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos – também a ele – sob a crosta firme das convenções que sustentam a fé. Em tal situação não está mais em jogo apenas isto ou aquilo – assunção de Maria ou não; confissão desse ou daquele modo –, tudo coisas que se tornam completamente irrelevantes, porquanto trata-se realmente do todo, do conjunto, tudo ou nada. É a única alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço de chão firme ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa para o abismo. Somente o abismo assustador e sem fundo do nada é o que se percebe, onde quer que se dirijam os olhares.
Paul Claudel evoca em um quadro grandioso e convincente essa situação do crente, na abertura do seu "Soulier de Satin". Um missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano . O drama principia com o seu derradeiro monólogo: "Senhor, agradeço-te por me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade diante dos teus mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a ti, do que o estou; e muito embora meus membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de afastar-se um pouco de ti. E assim realmente estou preso à cruz; e a cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar" .
Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o abismo. Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada, um madeiro desatado parece sustê-lo e tem-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele, esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente.
O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais vasta que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele irmão que se considera descrente, que deu as costas a Deus, por não considerar tarefa sua a espera, mas "a posse do atingível... como se este pudesse estar em parte outra do que onde tu, ó Deus, estás".
É dispensável acompanharmos a trama da concepção claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo dos dois destinos aparentemente contraditórios até ao ponto em que a sorte de Rodrigo finalmente se toca com a do irmão, quando o conquistador termina como escravo em um navio, devendo dar-se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que, de contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de lado o símile, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o crente é capaz de realizar-se em sua fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua fé. Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir [13] que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista que já de há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente certo – jamais o abandonará a secreta insegurança de se o positivismo está realmente com a última palavra. O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que – quem sabe? – a fé venha a representar e a afirmar a realidade. Portanto, como o crente se sabe ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ver nela a sua perene provação, assim a fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo. Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há de experimentar a incerteza da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá resolver sem sombra de dúvida a questão de se, por acaso, a fé não se cobre com a verdade. Somente na recusa revela-se a irrecusabilidade da fé.
Talvez venha a propósito aduzir neste lugar uma estória judaica escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema da existência humana. "Um dos sequazes do iluminismo, homem estudado, ouvira falar de Berditschewer. Foi-lhe à procura com o fito de comprar uma discussão, como era do seu feitio, e arrasar suas provas ultrapassadas da verdade da fé. Ao entrar no quarto do Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado em entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do visitante. Finalmente deteve-se, olhou para ele superficialmente e disse: "E contudo, talvez seja verdade." O sábio debalde tentou fincar pé, defendendo sua dignidade própria. Não o conseguiu. Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o aspeto do Zaddik, tão horrível de se ouvir a sua singela frase. Mas o rabi Levi Jizchak voltou-se completamente para ele e lhe disse, sereno: "Meu filho, os grandes da Torá com os quais disputaste, desperdiçaram palavras; tu te riste deles, ao te afastares. Não foram capazes de colocar Deus e o seu reino sobre a mesa, diante de ti; eu também sou incapaz. Mas, meu filho, reflete: talvez seja verdade." O iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas aquele terrível "talvez" a ecoar sem cessar, quebrou-lhe qualquer resistência" .
Apesar da roupagem estranha, temos aqui uma descrição muito precisa da situação do homem frente ao problema "Deus". Ninguém é capaz de servir aos outros o cardápio de Deus e do seu reino, nem o próprio crente pode servi-lo a si mesmo. Mas, por mais que a descrença se possa sentir justificada com isso, permanece de pé o horror daquele "talvez seja verdade". O "talvez" representa o inevitável ataque ao qual se é incapaz de fugir, no qual se deve experimentar, na recusa, a irrecusabilidade da fé. Em outras palavras: crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e [15] este para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio.

A pretensão de verdade da Igreja


“Pretender que as afirmações concretas de uma religião sejam verdadeiras, hoje parece não somente presunção arrogante, mas também falta de visão. O espírito do nosso tempo foi expresso por Hans Kelsen, quando propôs a pergunta de Pilatos ‘Que é a verdade?’ como a única atitude adequada, levando em conta os problemas morais e religiosos da humanidade, na busca de configurar uma comunidade civil. A verdade é substituída pela decisão da maioria – assim ele afirma -, precisamente porque, na sua opinião, não pode existir a verdade como entidade acessível e obrigatória para todos os homens. Assim, a multiplicidade das culturas torna-se prova da relatividade de cada uma delas. A cultura é contraposta à verdade! (Observação minha: Viva as culturas; abaixo a verdade! Abaixo a pretensão do cristianismo de ser a religião verdadeira! Abaixo a Igreja católica, que se julga a única Igreja de Cristo!) Este relativismo, que hoje, como sentimento básico da pessoa ‘iluminada’, invade também amplamente a teologia, é o maior problema da nossa época. Este é também o motivo pelo qual a verdade hoje é determinada pela ação e o âmago da religião foi mudado (Observação minha: É verdadeiro o que serve à minha ação, à minha luta ou aos meus objetivos. Como diz o pessoal da gloriosa Teologia da Libertação: não mais importa a ortodoxia, mas sim a ortopráxis. Pouco importa se alguém crê realmente segundo a fé da Igreja ou vive segundo a moral cristã. O que importa é a luta pela transformação social...). Nós não conhecemos o que é verdadeiro, mas sabemos o que devemos fazer: instaurar uma sociedade melhor, o ‘Reino’, como se diz tanto, usando uma palavra tirada da Bíblia e utilizada num sentido utópico profano”.

A Igreja, contudo, terá sempre o dever de perguntar e de pronunciar-se sobre o que é verdadeiro, não sobre o que convém ou o que é cômodo: “Se todos os seus esforços fossem empregados em evitar conflitos, de modo a evitar o surgimento de contestações e turbulências, então fracassaria a sua autêntica missão. Porque a mensagem que está na sua raiz visa exatamente a nos colocar em discussão, arrancando-nos da mentira e instaurando clareza e verdade. A verdade não é algo a preço de banana”. (Do livro Introduzione a Ratzinger, de Dag Tessore).

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A arrogância do relativismo



“Neste ponto, outra decisiva pergunta impõe-se: Não é presunção falar de verdade em tema de religião e, ainda mais, afirmar que se conheceu a verdade na própria religião? Aquela verdade única, que certamente não exclui a presença de verdades nas outras religiões, mas que recompõe em unidade os fragmentos dispersos? Hoje se tornou um slogan comum qualificar como simplórios, além de arrogantes, aqueles aos quais se pode reprovar a presunção de ‘possuir’ a verdade. (Observação minha: Note-se que é uma falácia, até mesmo uma mentira, dizer que a convicção de ter encontrado a verdade, faça alguém 'possuir' a verdade. O cristão católico não 'possui' a verdade, mas é possuído por ela! A Verdade não é algo, é Alguém! Somente quem não descobriu esse Alguém é que pode nos acusar de ser pretenciosos por ter encontrado a Verdade. Por puro dom, ela veio a nós! Seu nome: Jesus Cristo. Se Ratzinger é tão convicto do que fala, é porque ele mesmo, como cristão e filho da Igreja, experimenta o que significa ser possuído por essa Verdade. Não é por acaso que o seu lema de Bispo é  'Cooperadores da Verdade'). Parece que tais pessoas são fechadas ao diálogo e, portanto, não merecem ser levadas a sério. Ninguém ‘possui’ a verdade! Todos nós podemos sempre e somente mantermo-nos à sua procura.

Mas, poder-se-ia argumentar: que tipo de procura é essa que não pode mais chegar a uma conclusão? Procura de verdade ou, ao invés, não tem nenhuma intenção de encontrar, visto que o objeto da procura não pode existir? Além do mais, não é reduzir a uma caricatura o pensamento daqueles aos quais se atribui a pretensão de ‘possuir’ a verdade? Em nenhum caso a verdade se torna uma posse. A relação com ela deve ser sempre de humilde adesão, no temor de poder tornar-se indigno dela. Eu não posso vangloriar-me do dom recebido, como se se tratasse de uma coisa minha. Devo, ao invés, saber colocá-lo a serviço dos outros. O mesmo afirma também a fé: a dessemelhança entre o que nós conhecemos e a Verdade em si mesma é sempre imensamente maior que o dom da semelhança. E, contudo, essa imensa diferença não reduz o conhecimento a não-conhecimento, a verdade a não-verdade.
A mim parece que a acusação de presunção deveria ser invertida. Não seria, talvez, presunção, afirmar que Deus não pode nos dar o presente da verdade? que ele não é capaz de abrir nossos olhos? Não é desprezar Deus afirmar que nascemos irremediavelmente cegos e, portanto, a verdade não é tarefa nossa? Não é degradar o homem e o seu desejo de Deus considerar-nos como condenados a caminhar sempre às apalpadelas no escuro? A verdadeira presunção entra em jogo quando somos nós a querer tomar o lugar de Deus para estabelecer quem somos, o que podemos decidir, o que queremos fazer de nós mesmos e do mundo. Na realidade, o conhecimento e a procura não se excluem reciprocamente” (Do livro Introduzione a Ratzinger, de Dag Tessore).

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O martírio dos nossos tempos





Quando Pedro, Paulo, João, Tiago e os outros apóstolos começaram a pregar o Evangelho do Senhor em regiões distantes de Israel, certamente não achavam que sua missão seria tão difícil. Fome, frio, abismos, discussões e cansaço não faltavam. Tudo era muito difícil, e tão difícil que Marcos até chegou a desistir de sua missão certa vez (cf. At 13, 13), mas depois voltou atrás e se tornou um dos evangelistas. Enfim, dificuldades não faltavam a eles.
Mas assim como não faltavam dificuldades aos discípulos de Cristo, em seu peito também não faltava um sentimento fortíssimo pelo Mestre; um amor que inflamava em seus corações inexplicavelmente.

O próprio Paulo, que nem conhecera Jesus antes de sua morte, escreveu uma das declarações de amor mais lindas da história da humanidade (Rm 8, 31-39).
Nesta declaração, Paulo afirma que nem a morte apagaria o amor que ele e seus companheiros sentiam por Deus. E Paulo falava a mais pura verdade; basta olhar a quantidade de cristãos que foram perseguidos, torturados e assassinados por professarem sua fé em uma sociedade infectada por um paganismo descomunal. Alguns foram queimados vivos, outros foram jogados as feras, outros decapitados, outros lançados ao mar. Houve assassinato de toda maneira; desde que seu sangue escorresse qualquer morte valeria a pena para aqueles pagãos.

Mas os tempos passaram: o Império Romano caiu, o paganismo quase que acabou e houve uma considerável redução no número de martírios. Uma sociedade construída sobre os valores cristãos se ergueu no Ocidente impulsionado pelos trabalhos dos monges, e o homem aprendeu que Deus deveria ser o centro das coisas. Mas esses tempos também passaram: veio a Revolução Francesa, que dissipou ódio ao clero, ao sagrado e a verdade. O relativismo e o secularismo crescem, nada mais é sagrado, e a verdade não mais existe, pelo menos não aquela que dói. O paganismo volta à cena, e com ele o martírio.

Mas hoje não vivemos apenas aquele martírio que expulsava a alma do corpo da pessoa. Hoje o martírio mais comum é aquele que faz a pessoa morrer por dentro, que devasta o coração daqueles que amam o sagrado e a verdade, um martírio que tenta esconder as feras e as espadas. Tomara que tenhamos a força dos mártires dos primeiros séculos para enfrentar esse mal. Não é fácil, mas quem tem em mente que Cristo é por nós, vencerá.

João Carlos Resende

Olhos vivos, alma viva


"Meu filho, se o teu coração for sábio, alegrar-se-á contigo também o meu; meu íntimo se alegrará quando teus lábios falarem o que é reto. Teu coração não inveje os pecadores, mas persevera no temor do Senhor o dia inteiro." Provérbios 24, 15-17
Padre Paulo Ricardo de Azevedo dizia que a fronteira da Igreja passa dentro de nosso coração, que dentro de nós há um homem novo e santo e o homem velho e pecador, cabe a nós - com nossas atitudes - escolhermos em que lado queremos estar, dentro ou fora da Igreja, ser santo ou pecador.
Bem lá no fundo nós sabemos o que fazer, que devemos nos converter todos os dias, e o dia inteiro, como diz a passagem acima, mas também sabemos que a luta não é fácil, a batalha é as vezes terrível, tentações e dúvidas nos vem de todos os lados. Uma delas, e creio que todos já passaram por essa situação, é a de ter inveja daqueles que levam uma vida fácil, é aquela situação em que nos vemos batalhando e batalhando todos os dias, nos esforçando ao máximo para obedecer e viver os mandamentos de Deus mas a única coisa que ganhamos são mais dificuldades enquanto outros que nada fazem pelo Reino de Deus tem uma vida aparentemente mais feliz, uma vida fácil e próspera materialmente e nos vem a sensação de que nosso trabalho é em vão e a tentação de deixar tudo pro lado e viver como os ímpios.
Esse é um dos pecados contra o Espírito Santo enumerados por Santo Tomás de Aquino como sendo "pecados filhos da preguiça", é o pecado do desespero, não ter esperança que Deus possa mudar a situação, ver os ímpios vencerem e literalmente se entregar a situação, não mais lutar por pensar que nada pode ser feito. Daí vemos uma coisa, que precisamos dar uma parada brusca na nossa vida e reparar nos detalhes, pois Deus é simples, somos nós que complicamos as coisas, devemos ver que a verdade está - como se diz - debaixo do nosso nariz, somos nós com nossos olhos sujos que não a enxergamos.
Paremos um minuto e olhemos para os olhos dessas pessoas ímpias que aparentemente são felizes, como se diz "os olhos são as janelas da alma", essas pessoas tem olhos mortos, olhos fundos e vazios, um olhar sem esperança, aquele sorriso "amarelo" que logo percebemos que é um sorriso falso, que aquilo não é felicidade, que aquelas gargalhadas são somente formas de "maquiar" um vazio aterrorizante, um vazio de quem vive sem Deus, de quem vive o Inferno já aqui na Terra, de quem vive uma vida cheia de desespero, dúvidas e ódio. É esse tipo de pessoa que nós invejamos? Por isso Deus nos adverte, é uma idiotice do tamanho do universo invejar uma pessoa assim.
Por outro lado, vemos os faróis que Deus nos deixou, os santos, olhemos para os seus olhares, são explosões de vida, santidade, serenidade, força e tantas virtudes, parece que vemos o Céu nos seus sorrisos, olhemos para o rosto do Beato João Paulo ll, Madre Teresa de CalcutáSão Josemaria Escrivá e tantos outros, quando a cruz lhes foi entregue ao invés de reclamarem da vida eles as transformaram em ressurreição, transformaram morte em vida, eles venceram o desespero com a esperança, as dúvidas com a fé e o ódio com o amor.
Eles foram sábios verdadeiros, sábios como Deus quer e não sábios para o mundo, obedeceram aos mandamentos e nunca invejaram a miséria do mundo, mas por caridade a quiseram transformar em vida dando a suas vidas por Deus, por isso puderam ouvir de Deus: "Meu filho, se o teu coração for sábio, alegrar-se-á contigo também o meu", foram felizes aqui na Terra e são felizes por toda a eternidade.
Os santos tem olhos vivos porque tiveram uma alma viva. Que Nossa Santa Mãe Maria - como diz o título da ladainha - "... causa da nossa alegria" nos desvie de todas as tentações, principalmente de invejarmos o que é mau, que ela nos dê força de perseverarmos no temor do Senhor pois essa é a única forma de sermos felizes.
"A suprema felicidade está na contemplação da verdade". Santo Tomás de Aquino
Tiago Martins da Silva

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Bento XVI: palavras corretas politicamente incorretas



Caro Internauta, eis as palavras sábia, verdadeira, corajosa, desafiadora e politicamente incorreta do Papa Bento XVI aos Bispos na Conferência de Aparecida. Houve gente tendo ataque histérico por isso. Exemplos? O Ditador da Venezuela e alguns teólogos da libertação...

A fé em Deus animou a vida e a cultura destes povos durante mais de cinco séculos. Do encontro dessa fé com as etnias originárias nasceu a rica cultura cristã deste Continente expressada na arte, na música, na literatura e, sobretudo, nas tradições religiosas e na idiossincrasia de seus povos, unidas a uma mesma história e um mesmo credo, e formando uma grande sintonia na diversidade de culturas e de línguas. Na atualidade, essa mesma fé deve enfrentar sérios desafios, pois estão em jogo o desenvolvimento harmônico da sociedade e a identidade católica de seus povos. A respeito disso, a V Conferência Geral vai refletir sobre esta situação para ajudar os fiéis cristãos a viverem sua fé com alegria e coerência, a tomar consciência de ser discípulos e missionários de Cristo, enviados por Ele ao mundo para anunciar e dar testemunho de nossa fé e amor.
Mas, que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que seus antepassados, sem saber, buscavam em suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salvador que ansiavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do batismo, a vida divina que os tornou filhos de Deus por adoção; ter recebido também o Espírito Santo que veio para fecundar suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os numerosos germens e sementes que o Verbo encarnado havia posto nelas, orientado-as assim pelos caminhos do Evangelho. Com efeito, o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombinas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha. As autênticas culturas não estão fechadas em si mesmas nem petrificadas em um determinado ponto da história, mas estão abertas, mais ainda, buscam o encontro com outras culturas, esperam alcançar a universalidade no encontro e no diálogo com outras formas de vida e com os elementos que possam levar a uma nova síntese na qual se respeite sempre a diversidade das expressões e de sua realização cultural concreta.
Em última instância, só a verdade unifica e sua prova é o amor. Por isso Cristo, sendo realmente o Logos encarnado, «o amor até o extremo», não é alheio a cultura alguma nem a nenhuma pessoa; pelo contrário, a resposta ansiada no coração das culturas é o que lhes dá sua identidade última, unindo a humanidade e respeitando por sua vez a riqueza das diversidades, abrindo todos ao crescimento na verdadeira humanização, no autêntico progresso. O Verbo de Deus, fazendo-se carne em Jesus Cristo, tornou-se também história e cultura.
A utopia de voltar a dar vida às religiões pré-colombinas, separando-as de Cristo e da Igreja universal, não seria um progresso, mas um retrocesso. Na realidade, seria uma involução para um momento histórico ancorado no passado.
A sabedoria dos povos originários os levou felizmente a formar uma síntese entre suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam. Daí nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos:
- O amor a Cristo sofredor, o Deus da compaixão, do perdão e da reconciliação; o Deus que nos amou até entregar-se por nós;
- O amor ao Senhor presente na Eucaristia, o Deus encarnado, morto e ressuscitado para ser Pão da Vida;
- O Deus próximo dos pobres e dos que sofrem;
- A profunda devoção A Nossa Senhora de Guadalupe, de Aparecida ou das diversas invocações nacionais e locais. Quando a Virgem de Guadalupe apareceu ao índio São Juan Diego, disse-lhe estas significativas palavras: «Não estou eu aqui que sou tua mãe? Não estás sob minha proteção? Não sou eu a fonte de tua alegria? Não estás sob meu manto, no cruzar de meus braços?» (Nican Mopohua, nn. 118-119).

Esta religiosidade se expressa também na devoção aos santos com suas festas patronais, no amor ao Papa e aos demais Pastores, no amor à Igreja universal como grande família de Deus que nunca pode nem deve deixar a sós ou na miséria seus próprios filhos. Tudo isso forma o grande mosaico da religiosidade popular que é o precioso tesouro da Igreja Católica na América Latina, e que ela deve proteger, promover e, no que for necessário, também purificar.

Considerações a partir das palavras do Papa:
O Papa está certíssimo nas suas palavras. Seria conveniente recordar quanto segue:
1. Não se deve confundir a ação evangelizadora da Igreja com a ação colonizadora dos espanhóis e portugueses. É verdade que com o projeto de colonização veio também o Evangelho; mas também é verdade que a Igreja não impôs a fé aos indígenas e não os escravizou nem dizimou, como disse o Ditador da Venezuela. Os índios nunca foram obrigados pela violência a abraçar o Evangelho.
2. A motivação da ação da Igreja não era dominar, mas evangelizar e, muitas vezes, denunciou os maltratos aos índios. Basta recordar as missões e reduções, que procuravam salvaguardar a dignidade dos nativos. Tenham-se em mente o zelo de tantos missionários, movidos unicamente pelo amor a Jesus e o cuidado pelos indígenas...
3. Também não se deve levar muito a sério o grito de que o Evangelho destruiu a cultura indígena. Não há - adverte o Papa - cultura pura e imutável. As culturas estão sempre interagindo e modificando-se. Já entre os próprios índios era assim: tribo interagia com tribo, tribo dominava tribo... Na América pré-colombiana não havia o céu na terra: havia império oprimindo império, havia sacrifícios humanos, havia guerra e depredação da natureza. Basta de uma idealização ideologizada! Cultura é interação, mudança, desenvolvimento, tensão... Na Europa, por exemplo: que é a cultura francesa? A mistura da cultura celta, influenciada pela romana, transformada pela franca e burilada pelo cristianismo... Atualmente a cultura francesa continua em mutação, agora pelas ondas de imigrantes africanos e pela globalização... Isto vale para todos os povos em todos os tempos... É uma fantasia ingênua pensar que uma cultura seja imutável e inatingível.
4. Há mais: produto do homem ferido pelo pecado, a cultura tem marcas de pecado e o Evangelho as purifica. Por um lado, a cultura enriquece as expressões do cristianismo; por outro, é por ele purificada.
5. O cristianismo é um bem inestimável, pois traz a Salvação em Cristo, único Salvador. O próprio Cristo Senhor nos mandou levar o Evangelho a todos os povos. Na verdade, muitos cristãos já não crêem que Cristo é o Salvador e o Caminho. Prefeririam calar o nome de Jesus e reduzir o cristianismo a um grande programa filantrópico politicamente correto. A estes, Bento XVI não cede um milímetro. Será sempre uma tristeza vê presidentes de países latino-americanos fazendo pajelança, voltando a uma etapa pré-cristã! Há modos muito cristãos de exprimir a cultura indígena, a começar pelo rosto da Senhora de Guadalupe!
6. É uma bobagem muito grande querer exigir de pessoas que viveram há quinhentos anos atrás sensibilidades próprias da nossa época. É tal bobagem sem medida que nos privou de comemorar com alegrai os quinhentos anos do Descobrimento do Brasil. Resultado: enquanto a Austrália comemorou com júbilo seus 500 anos, nós tivemos de assistir um interminável desfile de protestos de uma esquerda delirante, um eterno e sem cabimento mea culpa... O Brasil é assim: um País mal resolvido, eternamente culpando-se a si mesmo... bobagem pura. Uma saudável análise crítica da história é desejável e justa; uma visão motivada pela ideologia do politicamente correto é um verdadeiro porre! (DOM HENRIQUE SOARES)